Este suor dos anos 90 cheira a 2018
O Teatro Experimental do Porto chega ao fim da sua trilogia sobre juventudes inquietas que foram ajudando a mudar o rumo de Portugal. Maioria Absoluta, até dia 24 no Teatro Campo Alegre, regressa aos noventas de Cavaco Silva, da luta contra as propinas, do teatro inflamado pela performance. Mas com a cabeça e o corpo implicados no presente.
“Uma maioria absoluta é uma merda. É ter medo de conversar.” Camisas de flanela, sapatilhas All Star, botas Dr. Martens, guitarras em distorção, sete actores hiperactivos em tensão e com tesão – e os anos 90 aqui tão perto, num Portugal onde Cavaco Silva fazia a dobradinha da maioria absoluta e milhares de estudantes iam para a rua manifestar-se contra o pagamento de propinas e a Prova Geral de Acesso ao ensino superior. Enquanto o associativismo estudantil estava ao rubro, as discotecas enchiam, a música punk entranhava-se, o corpo libertava-se (o que também incluiu mostrar rabos ao governo) e, nunca esquecer (será possível esquecer?), Cavaco Silva lá se ia divertindo a destruir o sector da agricultura e das pescas.
Gonçalo Amorim e Rui Pina Coelho, então colegas de faculdade, estavam lá, no meio disto tudo, e, para o bem e para o mal, foram os melhores anos da vida deles. Hoje, colegas de teatro – o primeiro encenador e director artístico do Teatro Experimental do Porto (TEP), o segundo dramaturgo residente da companhia –, fazem ecoar as memórias desses tempos no novo espectáculo Maioria Absoluta. É o desfecho da Trilogia da Juventude, que tem ocupado o TEP no último ano e meio e que agora chega ao fim no Teatro Campo Alegre, no Porto, com as nove récitas até dia 24 já quase esgotadas.
Idealizado por Gonçalo Amorim e por Rui Pina Coelho, mas desde o primeiro momento partilhado, em co-criação, com os actores e a toda a equipa artística do TEP, este projecto debruça-se sobre juventudes inquietas que foram ajudando a mudar o rumo do país. O primeiro capítulo, O Grande Tratado de Encenação (2017), punha o foco nas lutas da década de 50 contra o Estado Novo e na fundação do TEP, cujo papel era não só de agitação cultural mas também de acção antifascista (o avô de Gonçalo esteve envolvido na criação da companhia). O segundo round, A Tecedeira Que Lia Zola (2017), virava-se para o fenómeno da implantação dos anos 70, quando jovens burgueses letrados trocavam as universidades ou os primeiros empregos pelo trabalho nas fábricas e pelas comunas operárias.
“O espectáculo que deu origem a esta trilogia foi, na verdade, o do meio. Já há algum tempo que queria perceber porque é que os meus pais quiseram ir para a implantação no Vale do Ave e havia uma frase da minha mãe que estava sempre a ecoar: ‘Foram os melhores anos da minha vida’”, recorda Gonçalo Amorim. “A juventude são os melhores anos da nossa vida? Eu próprio pensei nisso e sim, são. Tudo estava a funcionar bem. Amor, sexo, política, utopia… Acho que a força da juventude é a capacidade que tem, de forma um bocado inconsciente mas com muita vitalidade, de transformar o mundo.”
Apesar de a biografia do encenador se infiltrar neste projecto e de haver uma clara pulsão historicista, a ideia sempre foi fintar o teatro documental puro e duro e construir ficções. Sem ficar parado a olhar para trás, sem embarcar na lengalenga condescendente e bolorenta de que a juventude está perdida. Por isso e para isso, o TEP convocou um elenco de jovens actores, dando-lhes liberdade para injectarem nos processos de criação os seus próprios inconformismos e ansiedades geracionais. Catarina Gomes, Sara Barros Leitão e Paulo Mota, nascidos nos anos 90, são os elementos presentes ao longo de toda a trilogia, a quem se juntaram, nesta recta final, Carlos Malvarez, Eduardo Breda, Íris Cayatte, Mariana Magalhães e Pedro Galiza.
“Houve uma pesquisa histórica – vídeos, actas, relatórios, livros, poemas, textos – e, em paralelo, tentámos perceber quem é que nós somos hoje e o que queremos dizer neste momento com esta impressão das juventudes revolucionárias do passado”, explica Sara Barros Leitão, 27 anos, que em Maioria Absoluta troca o palco pela sua primeira assistência de encenação. “O que estamos a fazer são espectáculos de resistência. Este, então, é altamente de resistência: nós estamos a fazer este espectáculo sem saber os resultados da DG Artes, sem saber se vamos ter apoios. Escolhemos fazer teatro em 2018, somos uma minoria, e isso é um acto político”, afirma a actriz, lembrando a situação de asfixia financeira que muitas estruturas estão a viver, TEP incluído, por causa dos atrasos nos apoios do Estado às artes para este quadriénio 2018-2021.
As lutas continuam
Em Maioria Absoluta, mais do que nas peças anteriores, as ligações com o presente são evidentes. De certa forma, e Dr. Martens à parte, estes anos 90 são muito 2018: fala-se sobre a falta de condições nas escolas, o desistir de estudar por não se ter dinheiro para pagar as propinas, o activismo LGBT, o feminismo. “Muitas das lutas dos noventas continuam. Nos outros dois espectáculos há uma frase que se repete: ‘Está tudo por fazer’. Neste não dizemos porque não é preciso”, aponta Sara Barros Leitão.
“É um espectáculo que tem memórias minhas e do Rui mas que acaba por cruzar a nossa juventude com a juventude dos actores, que é agora”, nota Gonçalo Amorim, que quando chegou a Lisboa para estudar Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova era “a minoria da minoria”. “O PSR [Partido Socialista Revolucionário] era a ovelha negra e quando me aproximei do partido estávamos ainda nos embriões de colectivos como o SOS Racismo e o Grupo de Trabalho Homossexual”, enquadra o encenador, na altura membro da associação de estudantes. “O meio estudantil em Lisboa nos anos 90 era pulsante, em particular na FCSH. Éramos os mal comportados. Três dos quatro que mostraram o rabo, do ‘não pagamos’, eram da FCSH.”
Esta juventude inquieta, a quem chamaram de “geração rasca”, estava “num beco sem saída”, considera Gonçalo. Fora de casa e, às vezes, dentro dela. “Nós olhávamos para os nossos pais, que tinham sido revolucionários, e víamos que eles estavam a assentar, a dizer que já não havia revoluções, a falarem do fim da história.” O dinheiro da CEE que entrava no país impulsionou uma euforia capitalista e uma melhoria temporária das condições financeiras de algumas famílias de classe média, o que contribuiu também para reforçar o conformismo e o individualismo. “Uma classe média foi protegendo a visão do ‘não há alternativa’, visão que ainda hoje continua, de certa forma.”
Neste cenário, diz o encenador, muitos jovens “refugiavam-se” no corpo. “O teatro dos anos 90, o teatro de armazém, era um teatro muito físico, muito gritado.” E é esse teatro que percorre, a alta velocidade, Maioria Absoluta, talvez a peça mais performativa e à flor da pele que vimos do TEP de Gonçalo Amorim. Aqui quase tudo é rugido, dos movimentos às palavras, passando pela música, numa fisicalidade exacerbada. “Cada peça da trilogia é dialogante com a estética do seu tempo, em Portugal”, sublinha o encenador. Se O Grande Tratado de Encenação andava à volta das referências de António Pedro, o primeiro director artístico do TEP (Antoine, Pirandello, Stanislavski), e A Tecedeira Que Lia Zola era declaradamente brechtiana, esta nova peça vai beber à Nova Dança Portuguesa e às experiências de Gonçalo com a companhia Útero, de Miguel Moreira, no final da década de 90. É impressiva, “assumidamente imperfeita”, sem uma narrativa, hedonicamente desorganizada.
“Em Portugal, a performance a entrar no teatro só se assiste definitivamente nos anos 90, principalmente por causa dos Encontros ACARTE [Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte da Fundação Gulbenkian]”, observa Gonçalo. “Andaram a mostrar muita coisa nos anos 80 mas é nos noventas que muitas companhias e artistas começam a assimilar isso, como a Mónica Calle, a Lúcia Sigalho, a Visões Úteis, As Boas Raparigas. Tentámos dialogar com esse tempo.”
No meio destes cruzamentos, remisturas, subidas e descidas entre o passado e o presente, concluiu-se uma trilogia, arrumou-se a casa. “Um processo transformador” que acaba por funcionar como uma espécie de súmula do percurso de militância política e social reinscrito no TEP por Gonçalo Amorim desde que assumiu a direcção, em 2012, e que serviu ainda para consolidar “uma ideia de companhia”. Não só com os cúmplices do costume – Catarina Barros na cenografia e nos figurinos, Pedro João na música e Francisco Tavares Teles no desenho de luz –, mas também ao lado de um elenco-base. “Houve aqui o que eu queria que acontecesse no Porto com o TEP há algum tempo, que é ser uma espécie de sítio de pensamento onde se possa construir algo em conjunto, investigar, passar conhecimento”, assinala o encenador.
E isso é para continuar. Neste quadriénio o TEP vai lançar um novo projecto de longa-duração, a Escola da Resistência, uma série de conferências abertas ao público dentro da sala de ensaio, que irão acompanhar as próximas criações, com a companhia pronta para “aterrar definitivamente no século XXI”. Enquanto isso não acontece, a Trilogia da Juventude vai andar por aí: a apresentação integral está agendada para Outubro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e para Novembro no Teatro Campo Alegre. Os corpos hiperactivos e suados de Maioria Absoluta vão voltar, e 2018 aqui tão perto. “Não te podes lançar para uma proposta destas sem acabares a transpirar. Tens mesmo que te implicar”, declara Sara Barros Leitão. “No final a sala fica a cheirar a anos 90, mas não é de todo nostálgico. Isto afecta-me, isto é sobre mim.”