Morreu Stephen Hawking, uma singularidade no Universo
Para o astrofísico norte-americano Neil deGrasse Tyson, a morte do físico britânico deixava “um vácuo intelectual”. “Que triunfo foi a sua vida”, acrescenta o astrónomo britânico Martin Rees. “Era muito franco e perspicaz, quer nas suas posições científicas quer nas pessoais”, completa o físico português Ricardo Monteiro.
Stephen Hawking, singular a tantos níveis, morreu esta quarta-feira de madrugada na sua casa em Cambridge, aos 76 anos. O físico britânico, um dos nomes da ciência mais prestigiados e o cientista da actualidade mais conhecido em todo o mundo, trouxe um novo olhar sobre os buracos negros, nunca deixando de se indagar sobre a origem do Universo. Ao mesmo tempo que provocava, com humor e intelecto, o que sabíamos sobre o cosmos – tanto junto da academia como do público –, desafiava os próprios limites da vida humana.
Aos 21 anos, foi-lhe dito que sofria de esclerose lateral amiotrófica e que teria dois anos de vida pela frente. A doença veio a afectá-lo gradualmente, ao ponto de conseguir mexer pouco mais do que um dedo e piscar os olhos, mas o físico fintou o diagnóstico pessimista: com a ajuda de uma cadeira de rodas e um sintetizador de voz, ultrapassou em quase cinco décadas o tempo de vida que lhe era dado – sem nunca prescindir de participar na comunidade científica.
“Vivi sob o espectro de uma morte precoce durante os últimos 49 anos. Não tenho medo da morte, mas não tenho pressa de morrer. Há tanta coisa que quero fazer primeiro”, dizia ao jornal The Guardian em 2011, recusando a ideia de uma vida para além da morte – seria “um conto de fadas para pessoas com medo da escuridão”.
Stephen Hawking nasceu em Oxford a 8 de Janeiro de 1942 – precisamente 300 anos depois da morte de Galileu Galilei, como gostava de mencionar – e morreu a 14 de Março deste ano – no dia do nascimento de Albert Einstein há 139 anos, que é também o dia do Pi (3,14).
“Estamos profundamente entristecidos pela morte do nosso pai”, lê-se num comunicado de Lucy, Robert e Tim Hawking, filhos do cientista casado duas vezes, e divulgado esta madrugada. “Foi um grande cientista e um homem extraordinário cujo trabalho e legado sobreviverá durante muitos anos”, diz o comunicado dos filhos citado pelo The Guardian. “A sua coragem e persistência, com a sua inteligência e humor, inspiraram pessoas no mundo inteiro. Ele disse um dia: ‘Isto não seria um grande Universo se não morassem lá as pessoas que amamos.’ Vamos sentir a sua falta para sempre.”
Impossibilitado de dar uso às suas cordas vocais, Stephen Hawking continuava a ser ouvido. Uma característica distintiva era o som da sua voz robótica, produzida por um sintetizador de voz; as letras ou palavras surgiam no ecrã do computador integrado na cadeira de rodas e Hawking escolhia quais queria dizer, através, nos últimos tempos, de um subtil movimento dos músculos das suas bochechas. A sua voz chegou a ser usada pelos Pink Floyd na canção Keep talking, do álbum de 1994 The division bell.
As limitações físicas não travaram o seu espírito aventureiro. Viajou pelo mundo (até foi à Antárctica), espalhando conhecimento à sua passagem, mas não se cingiu a ficar com os pés em terra: quando fez 60 anos, decidiu celebrá-los num balão de ar quente; passados cinco anos, participou num voo de gravidade zero. Poucos minutos antes da viagem, o cientista dizia estar entusiasmado com a possibilidade de “flutuar livremente no espaço” depois de tanto tempo “confinado a uma cadeira de rodas”.
A sua vontade de superar as adversidades, aliada à sua mente brilhante, fez com que se tornasse no mais famoso cientista do mundo desde Albert Einstein. A propósito de Einstein, na sua autobiografia, A Minha Breve História (Gradiva, 2014), fala deste episódio: “Os meus trabalhos escolares eram muito desmazelados e a minha caligrafia desesperava os professores. Contudo, os meus colegas deram-me a alcunha de Einstein e, por isso, talvez vissem em mim alguns sinais de qualquer coisa melhor. Quando eu tinha 12 anos, um dos meus amigos apostou com outro colega um pacote de rebuçados em como eu nunca chegaria a lado algum. Não sei se esta aposta foi alguma vez decidida e, se sim, em que sentido.”
Uma vida dedicada aos misteriosos buracos negros
Hawking dedicou a sua vida a tentar deslindar os mistérios do Universo, procurando conhecer os seus mecanismos e a forma como tudo começou. O seu objectivo, dizia, era “simples”: queria “um entendimento completo do Universo, desde a razão pela qual existe e pela qual existe sequer”. Destacou-se pelo seu trabalho na astrofísica, sobretudo no campo dos buracos negros e da relatividade, bem como pela divulgação científica, sendo autor do bestseller Breve História do Tempo: Do Big Bang aos Buracos Negros (1988), publicado em Portugal pela Gradiva.
Escrevia com “humildade e humor”, como se lê no seu site, que tem como fundo uma imagem do espaço captada pelo telescópio espacial Hubble.
Apesar de todos os contributos de Hawking, os buracos negros continuam a estar envoltos em mistério. Com base nos teoremas do cientista britânico, que combinavam as leis da teoria quântica e da relatividade geral, ele chegou à proposta do que ficou conhecido como “radiação de Hawking”, um tipo de radiação libertada pelos buracos negros conforme se vão evaporando até desaparecerem.
Foi esta uma das ideias que o tornaram famoso no meio científico: afinal, os buracos negros emitiam radiação, quando se pensava que se limitavam a “engolir” tudo (como são objectos superdensos e maciços, nada escaparia à sua gravidade, nem mesmo a luz). Em 2002, disse que queria que a fórmula da entropia dos buracos negros (também conhecida como a fórmula de Hawking) fosse gravada na sua lápide. No entanto, a radiação de Hawking ainda não foi confirmada por observações.
Com o físico britânico Roger Penrose, trabalhou ainda nas “singularidades” do Universo, pontos no espaço-tempo onde a teoria da relatividade geral deixa de funcionar, como no início do Big Bang ou nos buracos negros.
A sua tese de doutoramento (intitulada Propriedades dos Universos em Expansão), concluída em 1966, já na Universidade de Cambridge, foi divulgada pela primeira vez no ano passado. “Ao tornar livre o acesso à minha tese, espero inspirar pessoas em todo o mundo a olhar para cima, para as estrelas, e não para baixo, para os seus pés”, dizia Stephen Hawking. Em menos de 24 horas, houve quase 60 mil downloads da tese, informava a Universidade de Cambridge, que considerou tratar-se de um documento “histórico”.
O britânico argumentava que viajar no tempo é teoricamente possível, e não punha de parte a possibilidade de um cataclismo vir, “mais tarde ou mais cedo”, a limpar a humanidade da face da Terra – fosse esse cataclismo uma guerra nuclear, um vírus ou “outros perigos em que nem sequer pensámos ainda”. Por isso considerava imperativo que nos lançássemos ao espaço o quanto antes – mas, para isso, era preciso conhecê-lo.
No final do ano passado, Stephen Hawking apareceu de surpresa (num vídeo, não fisicamente) em Lisboa, na cimeira de tecnologia Web Summit. Num vídeo de oito minutos, o cientista alertou para os riscos da inteligência artificial, sublinhando a importância de incorporar questões éticas no desenvolvimento deste tipo de tecnologia.
Apesar da tristeza que vinha de mãos dadas com o anúncio da morte de Stephen Hawking, não faltou quem o homenageasse, lembrando o seu legado de conhecimento e conquistas e a sua persistência ao longo de toda a vida. O astrofísico norte-americano Neil deGrasse Tyson disse que a sua morte deixava “um vácuo intelectual”, que é no entanto preenchido com uma “espécie de energia que permeia o tecido do espaço e do tempo”. “Que triunfo foi a sua vida”, completou o astrónomo britânico Martin Rees, referindo que Hawking alargou horizontes e lutou contra todas as probabilidades que não jogavam a seu favor.
A NASA considerou-o um “embaixador da ciência” e o actor Eddie Redmayne, que protagonizou A Teoria de Tudo (de 2014) no papel de Stephen Hawking, reagiu à sua morte, dizendo que era “o homem mais engraçado que já conheceu”. “Perdemos uma mente verdadeiramente magnífica”, comentou ainda o actor, que por esse papel recebeu um Óscar de Melhor Actor. Várias outras figuras públicas – do meio científico e não só – lamentaram a sua morte, e não deixaram de agradecer todo o conhecimento que reuniu durante a sua existência.
Às terças-feiras no seu gabinete
Para o físico português Ricardo Monteiro, de 35 anos, agora na Universidade Queen Mary de Londres, este também foi um dia triste, até porque teve um contacto próximo com Hawking, uma vez que foi o seu orientador de doutoramento, entre 2006 e 2010. Tinha acabado o mestrado em física teórica em Cambridge e procurava um orientador, embora o nome de Hawking não lhe passasse sequer pela cabeça. “Foram-me indicados académicos com quem falar, entre eles o Stephen. Desde o primeiro momento, percebe-se que é uma pessoa simpática e divertida. Gostava de pôr as pessoas à vontade, porque sabia que a sua reputação e também a sua condição física podiam criar algum nervosismo naqueles que não o conheciam, pelo menos criaram em mim”, recorda. “Questionou-me sobre o meu percurso e os meus interesses e perguntou-me se gostaria de trabalhar em cosmologia ou na teoria dos buracos negros. Na altura, respondi cosmologia e foi esse o tópico em que comecei, embora acabasse por me focar nos buracos negros.”
Como era ser orientado por ele? “O estilo de orientação do Stephen exigia uma grande independência dos alunos, não só pela exigência dos tópicos mas também pela dificuldade de comunicação, devida à lentidão do sistema computadorizado de fala. Ainda assim, foi um orientador prolífico, com vários alunos ilustres mesmo depois de ter perdido a capacidade de falar. Com a idade, dada a lentidão crescente da comunicação, essa orientação tornou-se mais difícil e acabei por ser um dos seus últimos alunos”, responde Ricardo Monteiro. “Todas as semanas, às terças-feiras, convidava os alunos, tipicamente quatro, para almoçarem no seu gabinete. O plano era sempre o mesmo: comida indiana aquecida no microondas (para nós, porque ele tinha restrições dietéticas), seguida de uma apresentação por um dos alunos sobre o seu trabalho recente ou sobre um artigo científico que o Stephen julgasse interessante”, diz ainda o físico português. “Habituado a condensar a informação, sobretudo quando se tratava de discussões sobre física, os seus comentários podiam parecer crípticos, como um oráculo moderno. Por vezes, só bem mais tarde percebia o alcance do que tinha dito.”
Ricardo Monteiro diz ainda que era no contacto quotidiano que se realçavam as características pessoais de Stephen Hawking. “Era compreensivo com os nossos problemas e sabia que o doutoramento tinha momentos difíceis de dúvida. Era muito franco e perspicaz, quer nas suas posições científicas quer nas pessoais.” Por isso, as memórias que guarda desses tempos é que “foram extraordinários, com muitos altos e baixos, e o Stephen foi uma figura central”: “No início do doutoramento, o progresso era muito lento e cheguei a questionar se deveria seguir uma carreira em investigação. O Stephen ajudou-me a pôr os meus problemas em perspectiva. Havia qualquer coisa nele que me levava a pensar nas coisas que eram realmente importantes para mim.” E recorda também episódios curiosos, como este: “Recentemente, ao receber um prémio da primeira-ministra britânica, disse: ‘Obrigado pelas suas palavras generosas. Eu dedico-me a problemas matemáticos muito difíceis, mas por favor não me peça ajuda com o Brexit’. Classic Stephen.”
Recuando ao início dos anos 80, o físico Orfeu Bertolami, agora da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, também foi aluno do físico britânico na Universidade de Cambridge durante dois meses, quando fazia aí um curso preparatório para o seu doutoramento. “No início de 1984, houve um curso extraordinário de Stephen Hawking sobre cosmologia quântica”, nota o físico brasileiro que vive em Portugal desde 1989 e que destaca a “resiliência absolutamente extraordinária e uma capacidade de superação impensável” de Hawking.
“As aulas eram muito especiais, num ritmo completamente diferente de outras aulas. Ainda balbuciava, ainda tinha algum controlo das cordas vocais e às vezes entendia-nos as coisas. Dava as aulas junto de um assistente, que repetia o que ele dizia e escrevia no quadro as equações”, lembra, explicando que nessa altura o físico britânico tinha acabado de fazer a sua proposta “inovadora” sobre cosmologia quântica para tentar resolver os problemas da relatividade geral na compreensão das condições iniciais do Universo – e que “não é completamente consistente, sabemos hoje”.
Pela sua história de vida e exímio intelecto, o britânico tornou-se um dos cientistas mais reconhecidos pelo grande público, participando mesmo em diversas séries televisivas como Os Simpsons ou A Teoria do Big Bang. Em 2014, a sua história de vida foi adaptada ao cinema em A Teoria de Tudo, filme que valeu um Óscar de Melhor Actor a Eddie Redmayne. “O problema da minha fama é que não posso ir a lado nenhum sem ser reconhecido. Não me basta pôr uns óculos de sol e uma peruca, a cadeira de rodas denuncia-me”, brincou, numa entrevista a uma televisão israelita em 2006.
Quando lhe foi diagnosticada a doença que o tornou eterno companheiro da cadeira de rodas eléctrica — que às vezes conduzia de forma “imprudente”, tendo chegado a partir uma perna ao cair —, sentiu-se “injustiçado”, não percebendo o porquê. Entrou em depressão, sonhava com uma morte rápida, mas acabou por perceber que conseguia ir fazendo coisas mais simples, ainda que os seus músculos não ajudassem.
O seu casamento com Jane Wilde, pouco tempo depois de saber que tinha a doença degenerativa, deu-lhe forças — e, para Hawking, o facto de ter uma família saudável e de ter tido sucesso a nível profissional é a prova “de que não se deve perder a esperança”. Casou-se uma segunda vez, em 1995, com uma das suas enfermeiras, Elaine Mason (divorciaram-se em 2007). “Quando estamos perante a possibilidade de uma morte precoce”, disse ainda, “apercebemo-nos de que a vida vale a pena ser vivida e que há muita coisa que queremos fazer”.
Em A Minha Breve História contou que estava muito satisfeito com a vida. “Penso que as pessoas com deficiência se devem concentrar em coisas que essa deficiência não as impeça de fazer e não devem lamentar aquilo que não podem fazer. No meu caso, consegui fazer a maioria das coisas que queria.” Termina o livro dizendo: “O meu trabalho inicial mostrou que a relatividade geral clássica não se aplicava às singularidades no Big Bang e nos buracos negros. Mais tarde, mostrei que a teoria quântica pode prever o que acontece no princípio e no fim do tempo. Tem sido uma época gloriosa para viver e fazer investigação em física teórica. Fico feliz se tiver acrescentado alguma coisa ao nosso entendimento do Universo.” com Pedro Guerreiro