A meteorologia emocional de Evidence
Los Angeles é a cidade-berço onde Evidence faz as duas coisas de que mais gosta: ser pai e música. O novo disco vem quebrar um hiato demasiado longo de um veterano da cena alternativa do hip-hop americano.
Em Rain Drops, nona faixa de Weather ot Not, novo disco de um dos mais importantes produtores e rappers em actividade, os mais atentos detectarão a adulteração da letra da famosa I Can See Clearly Now de Johnny Nash: “I can see clearly now the rain is here / The pain is here, and I stayed sincere / All to say it’s the work in a day / And I’m all in my words that I word in a way”. Ao colocar a letra de Nash de pernas para o ar, ao falar das propriedades poéticas de uma chuva que é melancólica, pesarosa, sim, mas também, mais importante, reveladora — no sentido em que pode ser no sofrimento, e não num período de felicidade, que nos tornamos mais clarividentes —, Michael Perretta, mais conhecido por Evidence, músico californiano que entretanto também se fez fotógrafo, está, também, a explicar-nos a razão do seu hiato desde 2011, ano do seu último trabalho a solo (Cats & Dogs). Falamos de um período emocionalmente difícil marcado pela descoberta de um cancro da mama à sua companheira (ainda hoje em tratamento), “diagnóstico” muito especial — tão trágico quanto, se é que o podemos dizer, ternurento — de que Ev (que já havia perdido a mãe, confidente inseparável, para um cancro em 2004, assunto delicado que perpassava The Weatherman LP, 2007), fala, com uma comoção brutal, em By My Side Too (que, curiosamente, troca o Deus vigilante do gospel original samplado, “I Know He’s By My Side” dos Essie Moss and The Moss Brothers, por um ombro terreno): “His mother was trying to breastfeed him and she found something when she was trying to do that. It turns out she has a stage III C cancer. And he saved her life, man, he really did. So you a blessing my G” (o facto de o filho ter nascido a 24 de Dezembro só acentua o lado quase bíblico, bigger than life, de tudo isto). Sobre o surgimento da canção, Evidence disse à publicação HipHopDX que, quando a mãe faleceu, não andava a consumir erva, mas que, desta vez, foi diferente:
“Estava sempre pedrado, numa bolha, para evitar o que se passava. A canção rompeu com essa bolha, os meus dentes rangiam enquanto eu chorava e escrevia a letra. Mostrei-lhe a canção e ela [a companheira] perguntou-me o que eu ia fazer com aquilo. Eu não fazia ideia, mas ela insistiu que a devia lançar. É uma questão delicada, porque ‘vender’ uma doença é repugnante. Tem de ser algo em que as pessoas verdadeiramente entendam o sentimento genuíno do que estás a fazer”. O regresso faz-se, por isso, sob um mote esperançoso, vivo e vívido, como as insistentes palavras dessa canção, de uma simplicidade mas força extraordinárias, testemunham (“We alive / Survive / We alive”). E assim chegamos a 2018 e a este “novo começo” de Evidence (“I don’t know if God is watching / What I do know is that I got my options / A new beginning, who you kidding”, logo a abrir em The Factory), terceiro elemento (a par de DJ Babu e Rakaa, que faz aqui uma aparição na extraordinariamente jazzy Wonderful World) dos californianos Dilated Peoples, um dos mais estimáveis grupos do hip-hop dos anos 2000 pelo cruzamento da herança dos 90 com uma nova palete sonora, seguidos por uma legião de fãs tanto nos EUA como na Europa (algo nem sempre coincidente). Disco longo (17 faixas), fortíssimo, completíssimo, e em que, ao contrário do que é habitual, quantidade é, de facto, sinónimo de qualidade. Próprio de quem, hoje com 41 anos e uma valiosa carreira (já trabalhou com meio mundo e inclusivamente venceu um Grammy pela co-produção no The College Dropout de Kanye West), sabe que a reclusão e o silêncio são, muitas vezes, a melhor companhia para a criação artística — “The older I get, the less I speak”, afirma ele, com a sua característica voz minimal, anasalada, em Bad Publicity.
Saído do fundo do poço
Falámos no tempo que passou desde a pausa voluntária, a esse respeito importando dizer que Evidence é, justamente, o “homem do tempo”, agora meteorológico, como o carimbava o LP Weatherman. Metáfora para alguém que tenta antecipar — ou seja, aplacar, proteger-se, mas também celebrar — a canícula, mas também os dilúvios imprevisíveis, da sua mais-que-tudo Los Angeles, histórica cidade do gangster rap (Ice-T, NWA, Too Short) e do dito conscious rap (Jurassic 5, Pharcyde, Kendrick Lamar) a que ele pertence, lugar um tempo festivo e colorido, a outro sujo e violento (“Crossed streets where reality and hard times meet”, em Jim Dean), esse evocado pelo beat noir, fumarento, de The Factory (ou pela “Wu-Tanguiana” Sel Me This Pen), que ecoa o submundo esconso camuflado pela mitologia de Hollywood.
A extensão do disco reflecte, por isso, além do (fecundo) período de reclusão, essa variedade “meteorológica”, no sentido em que compreende diferentes ambientes, velocidades, humores, emoções, mas que, ao contrário do que é frequente, parecem ter sido alinhados de modo consciente, pensado, deixando cada um deles respirar devidamente, assim emergindo um ritmo próprio, coesíssimo. O distanciamento dos últimos anos e a experiência parental são o que fazem do disco um mergulho, sem pressas (To make a long story longer, scratch que se ouve na faixa homónima com a companhia do grande Jonwayne), no seu percurso pessoal (a infância complicada marcada pelo cinto do pai e o corte de relações subsequente) e na sua carreira, obstinado que Ev sempre foi em manter um posicionamento alternativo dentro da fauna do rap americano (não é por acaso que o disco é editado pela Rhymesayers, uma das mais selectas editoras indie de rap).
“Sinto que estou literalmente a mudar. Aprendi uma coisa quando fui pai, que é o facto de o Enzo me imitar, andar como eu, mexer-se como eu. Ele vai querer parecer-se comigo e, se um dia eu não estiver lá, é porque lixei tudo. Ele está a mostrar-me como o tempo é tudo. A sensação de isto já não ser apenas ‘sobre mim’ mas sobre o meu filho é marada”, disse recentemente à Billboard.
A introspecção agudiza-se em Powder Cocaine (na qual retoma o trauma pela perda da mãe), que, em harmonia com o refrão mais à frente (“These voices inside of my mind they will try / To drive me insane / But everything’s fine if I try to remain / Like powder cocaine”), se inicia com um coro psicadélico muito Beach Boys (as drogas e a alienação há muito percorrem as suas letras) acompanhado de umas estranhamente harmoniosas cordas country (as cordas bluesy de Runner, essas, parecem já à medida de um western revisionista de Tarantino). Foi um disco que demorou a arrancar, porque iniciado, como referiu à Billboard, a partir de um “fucked up place”: “Tudo o que eu escrevia naquela altura era depressivo. Não era que a caneta não se mexesse, simplesmente não estava a escrever o que eu queria que escrevesse” (palavras à HipHopDX). Mas é um trabalho, outrossim, positivamente surpreendente, na medida em que, contrariando um certo comodismo que frequentemente assola os veteranos, se revela fresquíssimo, intenso, sem espaço para um beat menos bom, entre produções do próprio e, sobretudo, de terceiros (e que terceiros: Nottz, Premier ou, claro, o compagnon de route Alchemist). Em Love Is A Funny Thing (que troca a inocência alegre da canção com título semelhante dos Queen por um olhar desconfiado, céptico), um dos momentos mais altos do disco, encontramos Ev em luxuosa companhia (refrão de Khrysis e Rapsody em grande forma) a interrogar-se sobre as (im)possibilidades do amor incondicional e as relações que a fama traz (“They say love is a funny thing / But what’s funny is the company that money brings / Every year my circle’s getting smaller”) ao som de uma pianada sempre em tensão (os pratos, em fundo, magníficos).
No debate em torno do hip-hop contemporâneo assiste-se a uma grande crispação entre os que defendem a ideia de um certo classicismo (rap de matriz poética, “conscious”) ancorado na fórmula conhecida por “boom bap” (estilo de composição associado aos anos 90 nova-iorquinos) e os que, acusando-a de ultrapassada, rejubilam com o trap (sub-género do rap e fórmula sónica muito distinta, ritmicamente descompassada e fazendo novo uso da tarola e dos pratos; na sua esmagadora maioria preenchido por letras descerebradas), como se tudo resumisse a dois lados (e, pior, a um posicionamento “a favor” ou “contra”), pelo caminho se ignorando o essencial, a saber, que, entre um e outro — aliás, para além de um e outro —, há um infindo mundo de possibilidades. O álbum de Evidence, ora soulful e luminoso, ora cru e escuro, é disso perfeito exemplo, composto de instrumentais sofisticados, inventivos, ritmicamente heterodoxos (sem nunca acusar o loop nuclear), e que, se se afastam absolutamente do trap, nem sempre se encaixam na tradição por vezes esquemática do boom bap — e, quando encaixam, revelam-se perfeitamente irresistíveis, casos de Jim Dean (“Never take my kindness for a weakness”, grande linha audível num clássico instantâneo sacado por Nottz) ou Throw It All Away, prova de como um bombo, uma tarola, uma linha de piano e um coro podem fazer maravilhas. Weather or not ou Whether or not? É só mais um dos duplos sentidos que não nos deve fazer perder de vista o mais importante, a saber, que aqui mora um dos discos de 2018 (e o último, como Evidence já anunciou, da série Weatherman), tão desejada rampa para uma constância maior — sem que isso signifique, longe de nós tal ideia, uma menor atenção para com o pequeno Enzo.