A dança no momento em que abre o baú e olha para trás
Até 16 de Março, o Festival Cumplicidades oferece sete palcos de Lisboa a sete criadores nacionais para apresentarem sete obras durante sete dias. Inês Campos e Miguel Pereira são dois dos nomes a exigir atenção.
Há três anos que Inês Campos vem escrevendo uma carta dirigida a si própria em que colecciona “uma série de referências, discos, textos, imagens, tarefas ou vontades”. Um pequeno arquivo pessoal que, acredita, talvez a caracterize enquanto artista especialmente dada a “passagens rápidas por uma multitude de personagens ou de estados temporários”. Dito assim pode parecer demasiado vago. Mas ajuda se acrescentarmos que tanto a podemos encontrar a dançar em peças de Tânia Carvalho ou da companhia finlandesa WHS, a apresentar exposições enquanto artista visual ou de bordados, a actuar com o grupo de música tradicional Sopa de Pedra ou a preparar a sua estreia como actriz em cinema numa longa-metragem de Catarina Vasconcelos.
Coexistimos, a peça que apresenta no Espaço Alkantara entre 10 e 16 de Março, integrada no Festival Cumplicidades, traz logo no título a assunção plena de que há demasiadas facetas naquilo que faz e quer fazer para que possa limitar-se a uma definição fechada de bailarina, música ou qualquer outra palavra que implique amputar a batalha por diferentes interesses que acolhe dentro de si a cada instante. Durante algum tempo, confessa Inês, esta inquietude trouxe-lhe alguma ansiedade, temendo que pudesse “estar a tocar em muitos lados, de que isto pudesse ser uma coisa meio dispersiva, sem construir verdadeiramente uma estrutura”. “Acho que hoje em dia já me aceito”, diz ao PÚBLICO, reconhecendo que esta procura constante por ângulos diferentes é um dos motores mais sólidos na fabricação do seu mundo artístico.
Inês Campos foi um dos sete nomes escolhidos pela coreógrafa Tânia Carvalho, co-programadora desta edição do Festival Cumplicidades, numa aposta que é igualmente um statement contra as carreiras habitualmente magras dos espectáculos de dança – cada um dos sete (a Inês Campos juntam-se Aurora Pinho, Vitalina Sousa, Vasco Diogo, Bruno Senune, Flora Detraz e Miguel Pereira) contará com sete apresentações durante o certame. No caso de Inês, esta “colagem de metáforas com uma carga simbólica” forte na sua vida assume a forma de 11 quadros, com linguagens que procurou manter autónomas e a salvo de contaminação mútua, e que surgem como pop-ups, cortando amarras com o bloco precedente e nada antecipando daquele que se lhe há-de seguir. A sua abordagem ao movimento tanto pode significar uma exploração pura da gestualidade e do corpo como pode implicar uma abordagem à técnica cinematográfica de stop-motion, movimentos que acompanham um corte-e-costura de uma rapariga da geração que acredita poder aprender tudo num vídeo do YouTube ou uma figura frenética sem rosto cuja acções são inspiradas pelo cinema mudo. Ou até um final em que Inês entrança o cabelo enquanto se escuta um canto tradicional da Beira Baixa. Coexistimos tem dança, teatro, cinema, manipulação de objectos, arquitectura em movimento, artifícios variados que tentam criar uma sucessão de ilusões, mas que esbarram inevitavelmente na aceitação da realidade.
No final, acredita Inês, estará em palco “uma espécie de conversa, meio privada, mas com a potência de ser partilhada”. Dos diários e das anotações que vai coligindo, quando solicitada, salta sempre qualquer coisa que encontra forma nesta expressão fractal. Uma expressão cuja única fidelidade será, porventura, à crença firme de que “as artes são promíscuas” e gostam da companhia umas das outras. No fundo, a arte natural em quem sempre teve “a sensação de que estava a apanhar os últimos comboios para algumas coisas”, movida por uma urgência que não pára de exigir novos destinos.
Memória e acessório
Se em cada criação Inês Campos dá por si a resgatar ideias soltas do seu baú e, portanto, a reivindicar tudo quanto identifique como pertencente a um passado com óbvio eco no presente, também Miguel Pereira deu por si a olhar para trás na coreografia que o Ballet Contemporâneo do Norte (BCN) o desafiou a criar para o festejar os seus 20 anos. Apercebeu-se então de que "o BCN se considerava uma companhia de reportório, um modelo que hoje quase já não existe”, e pareceu-lhe por isso que seria "interessante poder abordar o trabalho da companhia a partir dessa perspectiva da memória, ao olhar para um legado e um corpo de trabalho que existe e pode ser remontado”.
Estreada originalmente em 2015, a peça é mostrada agora no Teatro Ibérico, de 10 a 16 de Março, tentando contrariar a ideia de que o ritmo voraz da actualidade – com total correspondência no frenesim que faz com que a maior parte das estreias se afunde no esquecimento em menos de um ano – deixa poucos ou nenhuns vestígios. Repertório para Cadeiras, Figurantes e Figurinos foi montada a partir de um levantamento das peças criadas para o BCN ao longo de anos, colocando em diálogo esses materiais com obras passadas de Miguel Pereira e da História da dança – há por aqui alusões a Pina Bausch, a Anne Teresa de Keersmaeker ou a Merce Cunningham.
“Ao tentar encontrar um eixo comum, apercebemo-nos de que havia muitas incidências com cadeiras, figuras e figurantes”, diz o coreógrafo. “Decidimos, por isso, que esse seria o denominador comum deste reportório e criámos uma espécie de patchwork a partir de excertos e memórias de peças em torno destes três vectores.” Acontece que o encadeamento escolhido não se limita a amontoar cenas ou colocá-las em comboio, antes cria um discurso em torno do corpo, do objecto, da multiplicação e da efemeridade, ponto de encontro entre duas linguagens – a do BNC e a de Miguel Pereira – que não são necessariamente coincidentes. “Se fosse uma proposta pessoal minha teria talvez outras características do meu trabalho que aqui não existem – como a dimensão mais teatral.”
Aqui, pelo contrário, não existe a palavra e foca-se aquilo que, quase sempre, é acessório – as cadeiras, os figurinos, os figurantes. “A dança pode ser uma espécie de adereço – pode ser, por vezes, supérflua, esvaziada de contexto e de sentido para ser um cenário, por exemplo – e isso também me interessou neste trabalho”, diz o coreógrafo. E esse talvez seja o fito fundamental do Cumplicidades: lembrar-nos que a dança pode reclamar-se uma infinidade de coisas. Assim tenha tempo e espaço para o ser.