Segurança: para quê, para quem?
As lutas de populações que respondem a cada dia ao sofrimento injusto e a uma violência multiforme mantêm viva a esperança de outros modos de viver.
Escrevo esta crónica no regresso do Rio de Janeiro, onde participei num curso internacional, organizado pela Fundação Oswaldo Cruz — uma das principais instituições públicas de investigação e formação em saúde da América Latina — e pelo Centro de Estudos Sociais, no quadro de uma já longa colaboração. Durante vários dias, profissionais da saúde pública, investigadoras e investigadores, ativistas e estudantes partilharam experiências e aprendizagens do seu trabalho com populações e comunidades de favelas, indígenas, quilombolas, comunidades dos campos, águas e florestas e movimentos sociais.
Um trabalho continuado de comunidades, grupos e movimentos sociais com profissionais de saúde, investigadores e ativistas vem procurando manter e prosseguir, em condições crescentemente adversas, o processo de construção de um sistema público de saúde, que proporcionaria, em cumprimento do estabelecido na Constituição Federal de 1988, da saúde como direito de todos e dever do Estado, cobertura universal a uma população de 200 milhões de pessoas, respeitando as suas diferenças e dialogando com os seus saberes e experiências de cuidado, de terapia e de cura. Multiplicam-se assim experiências de luta pelo acesso a um direito humano, a um direito de cidadania e a uma segurança que passa, não pela repressão policial e pela negação de direitos, mas pelo acesso a condições de habitação, alimentação, água potável, energia, equipamentos sociais, cuidados de saúde, educação, trabalho, transportes públicos, um rendimento suficiente para garantir uma vida decente e digna, pelo reconhecimento da cidadania e pela participação democrática.
É em nome de uma outra concepção da segurança e do combate à violência que, no Estado do Rio de Janeiro, ocorre uma intervenção federal que transferiu, de facto, o poder no Estado para as forças militares. O motivo próximo invocado foi uma alegada vaga de violência que teria ocorrido durante o Carnaval, perante a manifesta incapacidade do governo do Estado de responder à situação. Contudo, e como mostraram tanto dados oficiais como os de diferentes organizações que monitorizam a violência, esta não teve proporções diferentes da ocorrida nos anos anteriores. A amplificação mediática de episódios de violência contribuiu decisivamente para criar um clima recetivo à intervenção e ao que alguns já chamam o “populismo da farda”, permitindo a um governo sem rumo e sem autoridade apropriar-se de uma bandeira que até aqui pertencia à extrema-direita.
Numa sociedade de extrema desigualdade, em que os mais ricos praticamente não pagam impostos e, através da sua cumplicidade com o poder político e mediático, garantem que essa desigualdade se perpetua, criminaliza-se os pobres e, em particular, os que são mais atingidos pelo desmantelamento de políticas sociais, agravado por uma vaga de privatizações e pelo congelamento por 20 anos das despesas públicas que afeta em particular áreas como a educação, a saúde e as políticas sociais. A mobilização do Exército para responder aos receios, alimentados pelo preconceito, em relação às “classes perigosas” que habitam as favelas acentua a vulnerabilidade dos seus moradores a uma violência que se perpetua sob a forma de violência estrutural e da violência lenta da privação e da despossessão, que tira anos de saúde e de vida aos que são tratados como criminosos potenciais nos lugares onde moram. O traçar da linha que coloca as comunidades do outro lado de uma linha que separa o reino da lei, da ordem e da segurança do império do caos e da violência aparece como mais uma manifestação do que Boaventura de Sousa Santos chama “a exclusão abissal”, demarcando um território onde o Estado de direito e os direitos humanos podem ser suspensos em nome da segurança pública e do combate à violência e ao crime.
As pessoas que moram nos espaços designados para a intervenção militar e policial — muitas delas deslocando-se para trabalhar na cidade — são identificadas e fotografadas à entrada e saída da comunidade; as mochilas de crianças que frequentam as escolas públicas são revistadas; a pretexto da luta contra o crime organizado, em especial o ligado ao narcotráfico, moradoras e moradores passam a uma condição de permanente suspeição. A continuada estigmatização das populações que moram nas comunidades, a identificação de pessoas negras, especialmente jovens, com o crime e o tráfico de droga, a designação sumária de “bandido” com que são descritas, ou o ataque a quem defende os direitos humanos como “amigo de bandidos” proliferam em noticiários de televisão, talk shows ou redes sociais, numa exibição quotidiana de ódio de classe, racismo, sexismo e misoginia e homofobia.
As lutas de populações, comunidades e movimentos sociais que, com profissionais de saúde, investigadores e ativistas respondem, a cada dia, ao sofrimento injusto e a uma violência multiforme, mantêm viva a esperança de outros modos de viver, de exigência de respeito pela sua dignidade e pelos direitos humanos, e em primeira linha pelo direito à vida e à saúde. O seu exemplo, reconhecendo a diversidade de condições, deve lembrar-nos que estas lutas convergem com as batalhas em curso nas democracias liberais da Europa e noutras regiões do mundo contra a privatização dos serviços públicos e a erosão dos direitos que sustentam a legitimidade dos regimes democráticos e do Estado social, contra a exploração e a precariedade, o racismo e a xenofobia, o sexismo e a homofobia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico