Lições de Neves-Neves: como fumar e dissecar sapos
O teatro de Ricardo Neves-Neves junta-se à música de Filipe Raposo para fazer de Banda Sonora uma delirante peça situada numa floresta de terror infantil.
Quando terminou de escrever The Swimming Pool Party, peça inspirada nos policiais de Agatha Christie, para abastecer a encenação de Mónica Garnel, Ricardo Neves-Neves viu-se com três órfãs nos braços. E percebeu que tinha ficado com vontade de estender esse universo dependurado da peça que terminara, de agarrar nessas vagas personagens e inventar-lhes um outro mundo, uma outra história, uma densidade maior para essa condição. Quando ainda não sabia bem o que fazer das três órfãs, para além de querer trabalhá-las como parelhas (algo usual no seu teatro), divididas por pequenas, médias e grandes – as primeiras macrocéfalas e dadas à curiosidade científica, as segundas obcecadas por regras sociais e filhas de um rei da Síria, as terceiras dadas ao prazer físico e tão volumosas que sentenciaram a morte da mãe com o seu nascimento –, o encontro com o músico Filipe Raposo ajudou a dar forma a Banda Sonora, espectáculo que estará em cena no São Luiz, Lisboa, de 9 a 18 de Março.
Era uma questão de tempo até Neves-Neves levar mais longe uma linguagem teatral que, desde o início, transborda uma essência musical, rítmica, polifónica, extravagante e desbragada. Desta vez, no entanto, a música tornou-se o motor criativo. Tanto assim que a ordem natural da escrita se inverteu e, depois dos primeiros encontros para “alinhavar possíveis estratégias de ataque” ao espectáculo, as conversas a dois acerca do universo musical a explorar desembocaram numa primeira proposta sugerida pela Ars Nova e pelo Renascimento. “Uma das características da Ars Nova é a independência dos textos e das linhas melódicas – o contraponto no seu esplendor”, comenta o pianista e orquestrador sobre as coordenadas iniciais, inspirado pela presença dos três pares de vozes.
Com essas coordenadas em mente, o músico apresentou uma primeira proposta baseada num popular conjunto de prelúdios de Bach, Cravo Bem Temperado, peças com “um potencial melódico-rítmico muito grande”, escrita para as três vozes e a Orquestra Metropolitana de Lisboa. No sentido contrário, Neves-Neves respondeu com um texto-canção em que uma menina castiga a fuga de um pássaro da gaiola cortando-lhe as asas bem rente ao osso, sangue a esguichar pelo quarto, mas, ainda assim, sorte a do bicho de não ter sido golpeado pelo pescoço – note-se, claro, que “osso” e “pescoço” são palavras estrategicamente colocadas para garantir a rima deste episódio macabro.
Tudo isto acabaria ampliado pela ideia de Filipe Raposo, com a cabeça cheia de bandas sonoras ligadas ao cinema, que ao pensar nos três pares de actrizes (Joana Campelo e Márcia Cardoso, Ana Valentim e Rita Cruz, Sílvia Figueiredo e Tânia Alves), escolhidas por semelhanças físicas (altura, tez, postra) e tímbricas, não conseguiu evitar a povoar a sua imaginação de um universo ligado aos filmes de terror. Tudo isso foi, às tantas, empurrando Neves-Neves para a ideia de formação de duplas – a sua com o músico, cada parelha de actrizes, a relação entre alegria e melancolia, inocência e perversidade, o colorido e o tenebroso, e o cenário formado pela montanha (a orquestra) e a floresta. “A floresta nos filmes de terror”, diz o autor e encenador, “é uma floresta do medo, do mistério, do segredo, da obscuridade, daquilo que mexe com os pesadelos, da morte.”
“Pensei na floresta da Branca da Neve e de Hänsel e Gretel, e fui ler contos tradicionais, as Fábulas de La Fontaine, em que a floresta tem um peso gigante”, relata. “E tal como diz a Paula Rego, os contos tradicionais portugueses têm um lado cru e cruel muito intenso, em que há uma ligação com o sofrimento físico e psicológico, com a tortura, em que tudo isso parece uma coisa fácil, sentida como normalidade.” No processo de investigação para a escrita, passando por leituras sobre rituais de acasalamento de animais, Neves-Neves deu por si a perguntar-se como seria a mãe da menina mais nova se aquela fosse um pássaro. Se, num primeiro instante, tal ideia pode soar a despropósito – o que também não seria novidade num autor que nunca recusou abrir a porta ao absurdo e ao ridículo nas suas criações –, esse dado ganhava uma força simbólica inegável na situação da pequena órfã. “Comecei a imaginar o que é ser uma mãe sozinha, que quer todo o bem para a filha mas que tem de emigrar, tem de ir para o hemisfério sul à procura melhores condições, tem de partir e deixar a filha.”
Antes de partir para o hemisfério sul, no entanto, a mãe avisa a filha pequena para os sapos, esses “mentirosos”, seres que beijados no momento certo – ou errado – se podem transformar em príncipes. É um alerta contra o mundo masculino, acompanhado do conselho de usar a sua faca para descobrir o que vai dentro do corpo do sapo – uma dissecação com vista ao domínio sobre o outro. A que se junta a advertência de não usar o mesmo procedimento com os seus bebés. “Não deves nunca confundir os dois”, acautela, frisando que uns e outros devem ser tratados de maneira diferente, mesmo que ambos possam frequentar a sua cama.
Introdução ao tabagismo
O trecho a que podemos chamar “a canção dos sapos” chega-nos em ritmo imparável, delirante, facilmente equiparável a muito do material que fomos ouvindo nas composições de Danny Elfman para o cinema de Tim Burton. “O Danny Elfman está para o Tim Burton como o Bernard Herrmann está para o Hitchcock”, comenta Filipe Raposo, não se escusando a assumir a clara influência que trouxe para Banda Sonora. O músico sublinha a importância dessa transparência enquanto “elemento que espelha de imediato o ambiente do Tim Burton”, aceitando entrar num “jogo de reflexões artísticas que era importante assumir porque fazem parte do nosso universo cultural”. Ou seja, a sombra de Elfman – tal como a de Dança Macabra, de Camille Saint-Saëns – é chamada à partitura não apenas pelo seu valor estritamente musical, mas também pela facilitação em fornecer um contexto na proximidade do terror e do fantástico que impõe de forma instantânea.
Levado por Filipe Raposo para os ensaios, Tim Burton serviu também de referência para a vontade de Neves-Neves em “trabalhar a zona da brincadeira na fronteira com a zona da morte”. “Fui pela primeira vez no meu teatro até à maldade da morte – o prazer de ver morrer, o prazer de matar, a curiosidade que se sobrepõe à noção da perda da vida”. Essa maldade tangente à inocência, de bisturi em punho para abrir a barriga a sapos ou a outros seres diante dos quais brote a urgente e suprema necessidade de ver como funciona o seu interior, tudo isso não é também demasiado estranho ao universo do livro de Burton A Morte Melancólica do Rapaz Ostra e Outras Histórias, também parte das leituras colectivas de preparação para Banda Sonora.
Ainda assim, diz Ricardo, foi uma entre várias outras inspirações que acabaram por resvalar para o interior do espectáculo – e em que se incluem fontes tão diversas quanto escritos do próprio Neves-Neves em criança, livros de regras sociais do Barroco e do Renascimento ou cartas de miúdos dez anos escritos pela turma da irmã do assistente de encenação Rafael Gomes. “Essas cartas foram muito importantes porque havia nelas uma personagem que definiu muito as médias [as “irmãs do meio”], uma coisa muito queixinhas que dizia que este e aquela iam para trás do pavilhão fumar e ela anunciava que ia pedir à secretária para abrir um processo disciplinar.”
A atitude delatora na definição do par do meio, das irmãs do meio, revela-se desde logo no segmento em que as mais velhas, seduzidas pela destreza da manipulação, tentam iniciar as mais novas na arte do tabagismo, enquanto as do meio fazem cara de nojo e lembram, chocadas pela absoluta falta de respeito pelas mais elementares regras de conduta, que “fumar é proibido” e algo de “inadmissível”. Os cigarros, desembainhados e ensinados a usar por meio de instruções dignas de um esmerado manual, tanto apelam para jogos de poder entre mais velhos e mais novos, para o prazer de perverter os mais pequenos, quanto para rituais de passagem de uma idade para outra – por vezes tão suaves e gráficos quanto neste gesto, outras vezes tão violentos e constantes quanto o fantasma contínuo da morte dos pais.
“Todas as personagens lidam com essa questão da perda dos pais”, assente Ricardo Neves-Neves. “Mas acho que há sempre passagens em todas as idades – não é só da infância para a juventude e da juventude para a idade adulta.” E exemplifica com os dez anos que agora se cumprem sobre a formação do Teatro do Eléctrico, companhia que ajudou a fundar com a actriz Rita Cruz, quando eram “moços de 20/30 anos”. “As nossas vidas são hoje profundamente diferentes. O nosso ambiente familiar é muito diferente, já há filhos nalguns casos, já deixou de haver pais noutros.” Significa isto que, mesmo feita de gargalhadas mais ou menos desconfortáveis, de um exagero e uma violência depositados na zona da infância, de um tom de terror e fantástico, de um humor ao qual é impossível não sucumbir, Banda Sonora é uma peça sempre atravessada pela ideia da perda daqueles que nos deram a vida.
Para lá da crueldade, da maldade e de toda a tragédia no palco, aquilo em que Neves-Neves pensa é como se faz para dar seguimento à vida depois dessas perdas. Como se perguntasse como se pode aprender com a crueza dos contos tradicionais e aceitar os acontecimentos trágicos como normais, não deixar que sejam paralisantes e ainda possam permitir, sem vergonha nem traição, armar um sorriso e, com espanto, perceber que as pernas ainda mexem e deixam seguir em frente.