Gal, Gil e Nando Reis: “Somos três amigos no palco, cada um torcendo pelo outro”
Gal Costa, Gilberto Gil e Nando Reis criaram juntos um espectáculo muito aplaudido no Brasil. Conversa com os três Trinca de Ases, antes dos concertos em Lisboa (Campo Pequeno, sexta e sábado) e no Porto (Coliseu, domingo).
Quando vemos Gilberto Gil, Gal Costa e Nando Reis juntos, é impossível não pensar nos Doces Bárbaros, grupo a que os dois primeiros pertenceram (com Caetano e Bethânia), em 1976, e que o terceiro, nessa altura ainda um garoto de 13 anos, idolatrou. Mas Trinca de Ases, trio que junta Gal e Gil ao ex-Titã Nando Reis, nasceu de uma proposta de concerto para homenagear Ulysses Guimarães, político brasileiro que foi dos principais resistentes à ditadura, por ocasião do seu centenário, em 2016. Quando Ulysses morreu, em 1992, o jornalista Jorge Bastos Moreno, que foi seu assessor, contactou Gil para um concerto, que este fez em parceria com Caetano Veloso. Agora, pelos 100 anos, pediu que fizessem um outro e foi Flora, mulher de Gil, quem sugeriu os nomes de Gal e Nando. A memória dos Doces Bárbaros veio depois. “Quando surgiu a ideia de que fizéssemos uma música para a abertura do show”, diz Gil, “o Nando falou numa coisa que remetesse para os Doces Bárbaros.” Nando explica: “Sem a pretensão de me juntar ao quarteto magnífico, a minha sugestão foi que a música de abertura fosse feita especialmente para a reunião. Nesse sentido, há um paralelo. A música do Gil é bem explicitamente sobre nós três.”
O espectáculo, já gravado para CD e DVD (que serão lançados pela Biscoito Fino em meados de Março), tem 25 canções, das quais três originais. Duas logo a abrir, Trinca de ases (de Gil) e Dupla de ás (de Nando), e uma quase no final, Tocarte (feita pelos dois). O nome do espectáculo, e do grupo, vem da primeira. Gil: “Nasceu depois da canção. Na verdade eu pretendi adoptar o sentimento de nos juntarmos. E a ideia dos ases me ocorreu por sermos artistas da canção já muito consagrados, pelo menos eu e Gal, e Nando a caminho de uma consagração mais definitiva, que caracterizaria a aproximação dos três.”
Uma canção sobre o assédio
Nando: “Eu vejo na composição do Gil uma proximidade com uma coisa que é típica da história da música brasileira, grupos como os Três Batutas…” Gil: “Quatro Ases e um Coringa…” Nando: “Há muita tradição desses grupos brasileiros, com essa referência.” Gal acrescenta: “Nesse caso eu sou um ás. É o meu lado másculo, guerreiro, forte. Acho que é uma grande homenagem, porque as mulheres, e hoje é Dia da Mulher [a entrevista foi feita no dia 8 de Março], há sempre uma comparação dizendo que o homem é mais forte do que a mulher e isso não é verdade, a mulher é tão forte quanto o homem.”
Já o tema Dupla de ás, apesar do título, diverge do jogo com cartas, explica Nando: “Neste caso, não é o ás do baralho mas o á vogal. Há apenas similaridade. Mas a ideia é que se fosse além da apresentação das individualidades. No show original, o Gil tocou primeiro quatro músicas, depois eu, e a Gal entrava como convidada, para coroar o espectáculo. Quando a gente viu que aquilo poderia avançar, passou a ser uma criação conjunta. E como eu e Gil somos compositores, fazia todo o sentido apresentar músicas novas. Porque isto não tem um carácter de rememoração, retrospectivo, é uma apresentação da actualidade.”
O terceiro inédito, Tocarte, “é um tema delicado, o do assédio”, diz Gil. Nando: “O limite entre o que é invasão e o que é o desejo. É uma letra extremamente bonita…” Gil: “Na conclusão, inclusive, onde a questão é colocada definitivamente: “Juntar num só momento o nosso par/ Meu sentimento, e o teu consentimento/ O meu querer e o que quer me dar.”
“Energia em todo o show”
Nando Reis escolheu praticamente todo o repertório, depois trabalhado pelos três. Diz ele: “Quase que tive de conter uma ideia de referência, tal a importância da obra dos dois na minha vida, na minha formação como músico. Por outro lado, deixa-me extremamente lisonjeado e honrado poder estar próximo deles, não apenas fisicamente mas na forma como a gente criou o trabalho. Conhecer com mais profundidade a forma do pensamento musical do Gil quando decidimos tocar as músicas dele, da Gal dando interpretação às minhas músicas, o que aliás foi um momento de júbilo para mim, como compositor.”
Claro que, na escolha, ficaram muitas “cartas” de fora. Porque tendo Gil e Gal 50 anos de carreira com mais de 500 músicas cada um, “teve de haver um descarte”, explica Gil. “Mas a selecção e montagem foi feita ao longo dos ensaios, da experimentação”, diz Nando. Que acrescenta: “Há percentuais de coisas clássicas, representativas das individualidades, e combinações da parte da interpretação. Tudo deveria vir daquilo que já foi feito, mas reelaborado. As próprias relações internas das canções apresentam outros significados. Por exemplo, a minha música O segundo sol, que está no bis, seguida de A gente precisa ver o luar [de Gil], é uma relação muito interessante. E concluir o show com Barato total [de Gil, sucesso na voz de Gal], enfim, são interpretações que a gente propõe para que a plateia as faça. Não é nada de didáctico.” Gal, revendo o repertório, diz: “Eu sinto energia em todo o show. Porque existe uma harmonia espontânea, natural, uma amizade. Somos três amigos no palco, à vontade, cada um torcendo pelo outro. Na verdade, nós cantamos juntos o tempo todo, mesmo quando os números são individuais a gente canta nalgum deles.”
O espectáculo irá continuar? Gal: “Eu acho que encerramos aqui. O Gil tem um disco para ser lançado, eu também, e o Nando tem uma tournée do novo disco dele.” Gil: “E não só por isso. Eu acho que essas propostas têm de durar o tempo natural. Fizemos já os lugares mais interessantes no Brasil, estamos vindo aqui fazer umas dez apresentações na Europa, em diversos países. Se no futuro tivermos vontade de nos reunirmos de novo, reuniremos.”
Trinca de Ases estará esta sexta e sábado no Campo Pequeno, em Lisboa (às 22h) e domingo no Coliseu do Porto (às 21h).