Por que é que não devia haver doutoramentos nos institutos politécnicos?
A minha oposição à existência de doutoramentos nos IP tem apenas a ver com a sua missão institucional.
Por força de vários projetos em que tenho andado envolvido conheço razoavelmente bem, sobretudo nas áreas das tecnologias de informação, comunicação e eletrónica (TICE), muitos institutos politécnicos (IP) públicos e tenho uma opinião extremamente positiva do que tem sido feito, nomeadamente a nível da qualificação, juventude e entusiasmo dos seus quadros docentes, particularmente quando comparado com uma universidade fortemente envelhecida. Como em tudo, há IP melhores e piores, maiores e mais pequenos, mais dinâmicos e mais conservadores. Exatamente o mesmo se pode dizer das universidades públicas, e há mesmo politécnicos que comparam, em certas áreas, favoravelmente em relação a certas universidades. Portanto, a minha oposição à existência de doutoramentos nos IP não se baseia num critério de qualidade; esse deve existir quando aprovamos planos doutorais nas universidades. Para mim, que sou forte defensor do sistema dual do ensino superior, a questão tem apenas a ver com a missão institucional.
Deixem-me usar uma alegoria para exprimir melhor a minha opinião: será que ser engenheiro na Volkswagen (VW) é pior (ou mais mal pago, ou menos prestigiante) do que ser engenheiro na Mercedes-Benz (M-B)? Será que é mesmo mais fácil fazer um VW, fiável, de boa qualidade e robusto, confortável e bonito, do que fazer um classe E ou um classe S da M-B, com tudo o que há de mais sofisticado, mas dez vezes mais caro? Será que faria sentido ouvir os engenheiros da VW dizer que também são competentes para fazer um Maybach, e que por isso deviam ser autorizados a fazê-lo? Claro que são competentes, e até fizeram o Phaeton — só que, como era de prever, não correu bem e foi abandonado. E, depois, qual é a procura de um M-B vs. a procura de um VW? Se toda a gente começar a fazer os topo de gama, haverá procura que o justifique? E, quando uma parcela significativa do esforço da VW for para fazer Phaeton, bons e vendáveis, que disponibilidade continuará a ter para fazer bons UP! ou bons Polos?
Penso que isto é razoavelmente explicativo daquilo que é a minha visão do sistema de ensino superior dual. Poder-se-á não concordar, mas dificilmente não se compreenderá.
Ora, se olharmos para “o mercado” precisamos urgentemente de aumentar o número de jovens com formação profissionalizante a nível ISCED [1] 4 e 5 e, se os primeiros são uma questão do secundário ou o pós-secundário, não superior, os segundos correspondem aos TeSP, instrumento fundamental de formação do ensino politécnico. Sobre eles, o esforço e a atenção é fundamental e muito exigente. E, claro, o ensino politécnico deveria continuar a investir fortemente na formação a nível da licenciatura (ISCED 6) e, embora em menor número, a nível de mestrados profissionalizantes (ISCED 7).
Esta é a lógica que eu defendo e que, na minha opinião, deveria corresponder a um desígnio claro e a uma consequente estratégia de implementação que, para ser bem-sucedida, exigiria um conjunto importante de mudanças, de que destaco apenas algumas:
• Para começar, uma mudança do ensino universitário, que não só não deveria corresponder à maior percentagem de ensino superior, como devia procurar ter, em geral, um papel mais longe da profissionalização e procurar trabalhar, quer a nível de ensino quer de investigação, nos TRL [2] mais baixos. O esforço deveria ser, em larga medida, a nível do ensino pós-graduado, tipicamente os níveis 7 e 8 do ISCED.
• Uma outra fundamental mudança seria a nível dos próprios curricula do ensino politécnico e de quem deveria estar envolvido na sua definição, aprovação e controlo. Estas funções não deveriam competir à A3ES [3] — pelo menos no seu formato atual, dominada pelos universitários e, sobretudo, pela sua visão —, e deveriam passar por órgãos próprios com uma fortíssima representação do mundo empresarial. Seriam também estes órgãos que deveriam estar envolvidos na avaliação institucional.
• O mesmo para a avaliação e para os critérios de promoção dos docentes: a sua capacidade de realização prática e de colaboração com indústria e serviços, de translação de métodos e técnicas, de transferência de conhecimento e tecnologias avançadas, a sua aplicação na resolução de problemas e a sua capacidade de angariação de projetos e de envolvimento de alunos, deveriam suplantar completamente qualquer critério bibliométrico; os concursos para o topo da carreira não deveriam ficar dependentes de provas de agregação só suscetíveis de serem feitas em ambiente universitário e segundo as suas regras.
Finalmente, uma nota relativamente à realidade atual, em Portugal. O doutoramento, por motivos diversos, não é, em muitas áreas e em particular em áreas de forte empregabilidade — como é a engenharia —, uma primeira opção para os jovens à saída do mestrado; a sua importância enquanto instrumento de valorização salarial é muito baixa e, para os alunos mais talentosos e exigentes, a opção por uma grande universidade internacional é fortemente atraente — e deve, a meu ver, continuar a ser estimulada. Por tudo isto, o número de alunos fortemente mobilizados, motivados e competentes, a nível doutoral, não é muito grande, tornando difícil (e pouco rentável) manter muitos programas doutorais. E, como natural reação à exiguidade de candidatos, a exigência à entrada vai baixando e é bem sabido quão difícil e penoso é trabalhar, a nível doutoral, com jovens menos preparados, menos motivados e menos talentosos: em minha opinião, as grandes universidades valorizam-se mais pela qualidade dos seus alunos do que dos seus docentes.
Ao permitir que a decisão de implementação de programas doutorais tenha a ver com algum critério de qualidade baseado numa avaliação científica das unidades de I&D a que a equipa docente estiver associada, a mensagem é óbvia: quem ainda não o tiver conseguido, o que tem a fazer é melhorar os critérios que convergem para essa avaliação, ou seja, publicar, publicar, publicar. E, claro, não é tão fácil fazê-lo se os níveis de ensino a que se estiver ligado corresponderem a uma formação de mais baixos níveis ISCED; só o fará quem não o conseguir evitar e, evidentemente, por uma questão de rentabilidade global, serão os “piores” que serão atirados para esses níveis. E, se olharmos para a realidade do país, isto ainda afastará mais o litoral do interior, agravando todas as dificuldades que Portugal parecia, finalmente, estar a reconhecer.
Por tudo isto, o ensino politécnico deveria ser o exemplo da boa ligação ao meio envolvente, área em que devia competir e ganhar à universidade, que normalmente o faz mal. Devia investir fortemente na formação inicial profissionalizante, mas também na requalificação e formação ao longo da vida. Deveria fazê-lo com toda a competência e exigência de docentes e investigadores altamente qualificados, mas com uma agenda quer de ensino quer de investigação clara e não virada para a produção de artigos em revista; o registo de patentes e produtos, a realização de projetos e a translação para o ambiente empresarial deveriam ser os grandes fatores de avaliação.
E, para isto fazer sentido, a aprovação de cursos, a avaliação institucional, a avaliação dos docentes e a sua progressão na carreira deviam depender de parâmetros próprios e ser feitos por instituições adequadas que não seriam, com forte probabilidade, as instituições que o fazem para a universidade, e muito menos com as mesmas regras.
[1] ISCED – International Standard Classification of Education
[2] TRL – Technology readiness level
[3] A3ES – Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico