Se num qualquer dia 1 de Abril abrisse o jornal e lesse "Município de Bragança altera data da Feira das Cantarinhas" sorriria e pensaria para mim: "Que mentira tão fácil de identificar, como se fosse possível mudar a data de uma feira à qual inicialmente se chamava feira do 3 de Maio!" Imaginem então a minha surpresa quando, não num primeiro de Abril mas num 5 de Março, leio este mesmo título nos jornais. Os motivos para esta alteração são conhecidos e já lá vamos. Mas primeiro, deixem-me apresentar-vos Bragança.
Bragança é a capital de um dos distritos mais despovoados do país. Para mim, é a cidade mais especial do mundo porque, claro, é minha, mas acredito que quem vem de fora consegue também ver um pouco da sua singularidade. O nome deriva do topónimo latino Brigantia, que significa alta, eminente, elevada. Ela é mesmo assim e nós, que a ela pertencemos, nascemos todos com esse orgulho, essa elevação, essa altivez de dizer que "depois do Marão mandam os que cá estão". Somos humildes nos nossos costumes e ferozes em defender o que nos distingue de tantas outras cidades que, à primeira vista, são iguais a nós. É por esta ferocidade que nos caracteriza que não posso deixar de vos falar da nossa Feira das Cantarinhas.
É uma feira anual de origem medieval que acontecia nos primeiros dias de Maio e onde tipicamente se compravam novas cântaras de barro que serviam outrora para transportar água para a lavoura. Por isso mesmo, depois de muito tempo a ser chamada "feira do 3 de Maio", acabou por vulgarmente tomar o nome do seu produto estrela: as cântaras. Hoje, estas são essencialmente um elemento de decoração e, diz o povo, trazem sorte a quem as recebe. Esta feira foi crescendo e acolheu novos produtos, modernizou-se e sobreviveu aos tempos e às mudanças de localização, mantendo sempre os dois elementos principais que lhe vão no nome: a data e as famosas cantarinhas. Até agora. O município de Bragança acaba de decidir que a data desta feira secular passa automaticamente para o primeiro fim-de-semana de Maio, com o objectivo de melhor satisfazer os interesses turísticos e comerciais da cidade. Para legitimar a decisão, sondaram-se os munícipes num processo que muitos não reconhecem como válido e do qual se obtiveram 1485 respostas. Destas 1485 respostas, aproximadamente 906 pessoas deram um parecer positivo à proposta de mudança. Repito, 906 pessoas. Num município com mais de 35 mil habitantes.
Em Bragança somos assim. Olhamos do alto dos nossos mais de 600 metros para o resto do país, vemos o que os outros fazem e queremos fazer também. Igual, melhor se for possível. Esquecemo-nos, porém, que do alto não vemos os que foram plantados ainda mais alto do que nós. Como a cidade da Guarda que, dos seus 1000 metros de altitude, é a mais alta de todas e percebeu que as tradições são tanto mais fortes quanto mais inalteradas permanecerem. Como a sua feira anual secular de São João, que desde sempre se fez no 24 de Junho e que de há uns anos para cá retoma o conceito original. E não, na Guarda dia 24 de Junho não é feriado.
A questão que eu coloco é simples: o que interessa mais a uma cidade como Bragança? Agarrar-se às tradições que a tornam diferente, acarinhá-las, protegê-las e valorizá-las, ou adaptá-las e modificá-las com vista a um aumento rápido dos lucros comerciais? Num caso como este, quantas vozes são precisas para dar força e legitimar uma decisão da autarquia? Em Bragança a resposta está dada: 906.