Christiane Jatahy testa o lugar do espectador em Lisboa
Após uma longa espera, a encenadora e cineasta brasileira foi, finalmente, confirmada como Artista na Cidade 2018. Entre Maio e Novembro, oportunidade para adentrar em Lisboa a obra de uma das criadoras mais relevantes da actualidade.
Por estes dias, Christiane Jatahy está entregue à azáfama própria da recta final de preparação da estreia de uma nova criação. A 16 de Março, Ítaca terá a primeira apresentação no Théâtre Odéon, em Paris, onde vai estar mais de um mês em cena. Depois disso, será altura de a criadora brasileira rumar a Lisboa, onde foi apresentada este domingo, no São Luiz Teatro Municipal, como Artista na Cidade 2018 – um anúncio com considerável e inexplicado atraso, que a confirma como sucessora de Anne Teresa de Keersmaeker, Tim Etchells e Faustin Linyekula na bienal em que um nome fundamental das artes performativas é convidado a apresentar a sua obra e estabelecer uma relação com o público e a comunidade artística lisboeta.
Há muito que o nome de Jatahy era soprado como a escolha para um programa que se pretende transversal às várias salas da cidade – mas que perde, em 2018, muitos dos parceiros habituais (Gulbenkian, Centro Cultural de Belém, Maria Matos, Culturgest...) num programa substancialmente mais magro do que o habitual, ainda que se estenda de forma inédita ao Cinema Ideal, ao Cinema São Jorge ou à Cinemateca Portuguesa, algo que se justifica pela especificidade de um percurso que parte do teatro mas dialoga repetidamente com o cinema. O que faz com que a distribuição do programa se foque em três momentos fundamentais: a apresentação no Teatro Nacional Dona Maria II de uma trilogia baseada em textos clássicos da dramaturgia mundial (Júlia, E se Elas Fossem para Moscou? e A Floresta que Anda, a partir de Strindberg, Tchékhov e Shakespeare, respectivamente), a estreia nacional de Ítaca no São Luiz no encerramento do Festival Alkantara e um conjunto de obras que existem fora dos palcos, e de apresentação menos frequente, entre o documentário e a ficção, acompanhadas de uma mostra de filmes que influenciaram decisivamente o seu percurso.
Jatahy confessa em declarações ao PÚBLICO ter recebido “com muita alegria e muita emoção” o convite para ser a Artista na Cidade 2018, e explica que as suas propostas artísticas actuam “sobre as fronteiras – não no sentido de construí-las, mas de apagá-las”. Esse apagamento terá, então, como primeiro movimento as três peças que, entre 4 e 20 de Maio, ocuparão o palco do Teatro Nacional, esbatendo a distância entre obras formativas para a artista brasileira (Menina Júlia, As Três Irmãs e Macbeth) e injectando “o agora, o presente, a realidade em textos pré-existentes”.
“Essa trilogia”, um formato pelo qual Jatahy se diz obcecada, “permitiu explorar e trazer as questões políticas e pessoais" que a movem hoje para essas obras, "como num jogo de tiro ao alvo”. Assumindo que a gramática da imagem em movimento sempre fundamentou a sua mise-en-scène, foi com Júlia que começou a destruir outras fronteiras – as que possam separar teatro e cinema –, quando finalmente descobriu como colocar a projecção em cena, sem trair a dramaturgia da obra. “É como se em Júlia o público visse o cinema sendo feito, em Moscou estivesse dentro do cinema e visse como se realiza esse estar dentro, e em Floresta que Anda fosse a própria obra cinematográfica.” As três peças contêm em si um gérmen político, partindo da aceitação do outro, passando pela abordagem à mudança pessoal e terminando com um Macbeth que “é o próprio sistema em que estamos inseridos”.
Estreado em 2015, Floresta que Anda, a partir de Macbeth, acabaria por revelar-se um espectáculo premonitório dos acontecimentos políticos recentes no Brasil que conduziram à destituição de Dilma Roussef. Disso dará conta também o livro acerca da construção do espectáculo – cuja edição portuguesa será lançada a 19 Maio –, baseado na gravação em áudio que Jatahy realizou de todo esse processo.
De Ítaca às salas de cinema
Se é por uma trilogia que começa a bienal, segue-se a primeira parte de um díptico em torno de Homero. Ítaca – a Nossa Odisseia, de 7 a 11 de Junho, no São Luiz, “projecto que fala sobre a guerra e em que o Brasil está presente de alguma maneira”, estabelece também uma ponte até Moving People, outra das obras fundamentais e menos visitadas de Jatahy que ocuparão o segundo semestre da sua relação com Lisboa, consagrado sobretudo à “pesquisa relacionada com o audiovisual e o documentário”. A ideia de odisseia levou a que Jatahy se socorresse de “entrevistas a pessoas não sobre o lugar de onde partem ou para onde vão [como acontece em Moving People], mas sobre o momento da travessia, sobre estas odisseias que o mundo está vivendo hoje”.
Moving People, em apresentação no Museu de Lisboa de 20 a 23 de Setembro, “é um documentário realizado ao vivo dentro de um espaço fechado, com duas telas, uma equipa de filmagem, duas pessoas que tenham vindo viver para Lisboa e um actor nascido na cidade”. O público assiste a esse documentário adaptado a cada lugar, e em que se pretende que a cidade interfira de forma contundente. Dirigido por Jatahy em tempo real (a artista transmitirá instruções ao actor, permitindo a construção de uma performance invisível), pretende criar um diálogo entre três desconhecidos que possa expor “menos as diferenças do que as afinidades que temos com cada uma daquelas pessoas”.
Outra das suas criações raras, In the Comfort of Your Own Home, que estará no Cinema Ideal entre 8 e 15 de Novembro, regista os 30 dias em que Jatahy se fez acompanhar de outros tantos artistas brasileiros durante as Olimpíadas Culturais de 2012, em Londres, onde cada um apresentava uma performance baseada na ideia de estrangeiro na casa de um habitante da cidade. Além do documentário Utopia.doc, do filme da ópera Fidélio e de um ciclo na Cinemateca, Jatahy apresentará ainda, a 24 de Novembro, no São Luiz, a vídeo-instalação de 13 horas A Falta que nos Move, documento de um espectáculo que representou um ponto de viragem fundamental na sua obra e que dá a ver o bruto das filmagens de um encontro de amigos numa véspera de Natal. “É um happening, de entrada livre, uma performance que existe na relação com o cinema mas que é construída pelo público”, descreve. Essa é, aliás, uma preocupação constante no desenvolvimento da sua obra: a de reflectir e testar como é que o espectador pode fazer parte.