Santa Engrácia, ora pro nobis
Já não há paciência para este desnorte e desresponsabilização do Estado na Linha do Tua.
Em 2008, o troço Tua-Cachão é encerrado graças a um acidente cujas origens incluem a inacção da Refer em renovar a via, em concordância com as recomendações do LNEC após o acidente de 2007. Em 2009 é estabelecida a cota mínima para a barragem do Tua, garantindo que o troço Brunheda-Cachão nunca será afectado pela albufeira. Em 2010 é lançado o Plano de Mobilidade, que inclui a exploração ferroviária da Brunheda a Carvalhais, Turística e Regional. Em 2011 nasce a Agência de Desenvolvimento do Vale do Tua. Estão reunidas todas as condições para que o comboio volte a servir as populações do Cachão à Brunheda.
Acontece que nove anos e meio depois o serviço ferroviário ainda não voltou a este troço. Desclassificada da rede nacional, com um concessionário definido há dois anos, a via reparada dos danos causados por roubo de carris e falta de manutenção, e o próprio material circulante parado em Mirandela, dia 19 de Fevereiro deveria ter arrancado o primeiro teste de circulação, de Mirandela ao Cachão. E até mesmo este foi adiado sine die.
Já não há paciência para este desnorte e desresponsabilização do Estado. Este jogo do empurra sobre quem deve custear a manutenção da infra-estrutura já deveria ter ficado explícito no Plano de Mobilidade, ou sanado nos oito anos subsequentes. Estamos em face a incompetência, incúria, ou ambos, tanto da Infraestruturas de Portugal (IP) como da tutela; contudo, “responsabilidade política” rima com “coisa nenhuma”. Enquanto isso quem paga é a Douro Azul, que acumula prejuízos pelos adiamentos do arranque da exploração, e claro os utentes da Linha do Tua e a região, que se vêem privados de transporte, captação de receitas e criação de emprego.
Entretanto, de Carvalhais a Bragança, três autarquias pretendem transformar 76 km da linha numa ecopista, um absurdo que duas delas herdaram de executivos derrotados, mas que nenhuma parece questionar. São 1,8 milhões de euros (metade do custo por km da obra mais barata do género em Portugal), para limpar mato, tornar nove pontes transitáveis, colocar iluminação em três túneis e recuperar seis estações. O canal ficará em terra batida — já está há décadas —, desmantela-se património industrial secular, num atropelo a todas as recomendações internacionais, e 12 estações e um conjunto de outros edifícios continuarão entregues a si próprios.
Tudo numa região com 300% de taxa de envelhecimento, 10% de perda de população, milhares de km de percursos com as mesmas valências, temperaturas que vão dos -5ºC aos 35ºC, num traçado com rampas de oito a 19 km e inclinações de 2%, todas a mais de 10 km da cidade mais próxima, penetração máxima habitual para este tipo de pistas pelos seus utilizadores.
Dirá o protocolo de cedência do canal pela IP que o troço estará “predestinado” à reutilização turística, e que não se “prevê” a reabertura da Linha do Tua. Uma das entidades responsáveis pelo atraso na reabertura do troço Brunheda-Cachão é a mesma que, numa declaração de teor calvinista, “predestina” outro troço da linha ao lazer. Estou certo que as populações de Carvalhais a Bragança louvarão este ditame quasi divino: qual não é o septuagenário que não ansiará por uma ida à sede de concelho a pedalar por um carreiro de terra batida acima, no meio de uma geada ou de 30ºC à sombra? Mas passando a jocosidade desta apoteose vinda de Almada, subsiste a mesma pergunta: o que justifica que autarcas locais — e comunicação social — continuem a ditar como utópica a reabertura da Linha do Tua a Bragança, se nenhum deles apresentou ainda um estudo a comprová-lo? Estará o exercício da soberania — e da comunicação — votado às artes divinatórias?
Mais grave que isso é continuarem a ignorar de forma alarmantemente despreocupada os dados que cidadãos como eu teimam em lhes fazer chegar, sobre custos e proveitos de tal desiderato. Deixo a questão às Comunidades Intermunicipais competentes: para quando a formação de uma equipa multidisciplinar que elabore um estudo sério e rigoroso sobre o regresso do serviço ferroviário a Bragança, e quebrar com este interminável ciclo de autarcas cuja atitude perante este problema da região é “nem sei nem quero saber”?
Valha-nos algum poder divino — que não vindo de Almada — para estas obras de Santa Engrácia terminarem de vez, e se devolver a Linha do Tua a um ambiente respirável de mais alguma decência.