“Por mais que procure, não encontro nenhuma canção que tenha mudado o mundo”

Na indústria musical teve muitos papéis. Mas é o de compositor que mais lhe agrada. Integrou grupos como o Quarteto 1111, inventou as Cocktail ou as Doce, geriu artistas, administrou editoras. Aos 66 anos, celebra 50 de carreira com um novo disco, o seu quarto a solo. Tozé Brito faz canções, mas não acredita que elas mudem o mundo

Foto
Rodrigo Cabrita/Arquivo Tózé Brito

Na infância de Tozé Brito há um piano. Podia, se fosse um segredo, ser o seu Rosebud, à semelhança do trenó de Charles Foster Kane no filme de Welles, mas o segredo será menos o piano do que o significado que ele acabou por ter para o rapaz que, aos oito anos, a contragosto, se viu frente a frente com as teclas. “O meu pai adorava música e era bom músico também, mas amador. Tocava muito bem viola. E achava que a música era uma parte importante da educação”, diz ao P2. Por isso, pôs o filho a aprender piano, com aulas em casa. “Eu não gostava, fazia aquilo por obrigação. Dois anos de solfejo, de escalas, foram uma dor de cabeça horrorosa. Mas hoje estou muito grato, porque esses dois anos de piano foram muito importantes para o que vim a fazer depois. A minha formação musical começa aí.” Passou a seguir para a viola, com concordância do pai, que aceitou ensiná-lo, mas o piano ficou-lhe na memória, até hoje. Inalcançável, mas presente: “Adorava tocar bem piano, é o instrumento para mim mais completo.”

Nascido António José Correia de Brito em Ermesinde, em 25 de Agosto de 1951, Tozé Brito já foi um pouco de tudo, mas sempre na mesma área: músico, cantor, compositor, letrista, produtor, editor, gestor de artistas e repertório, director, administrador. A sua história, pessoal e profissional, já foi contada em dois livros, no espaço de dez anos: As Lendas do Quarteto 1111, de António Pires (ed. Ulisseia, 2007) e Tozé Brito — Eu Sou Outro Tu, de Luciano Reis (ed. Parsifal, 2017). O que o traz, então, de novo à ribalta? Um disco (pela Sony), o quarto a solo em 50 anos de canções, que também celebra.

 

Pop Five, Quarteto 1111 e Jay-Z

Começou cedo nos conjuntos musicais, aos 14 anos. “Primeiro foram Os Duques, um grupo de liceu. Tocávamos só covers, puras e duras. Um ano mais tarde, formámos o Pop Five, onde já começamos a tentar escrever as nossas canções. Aliás, a minha primeira canção, You’ll see, vem desse tempo. Era tudo em inglês. Havia ali um preconceito contra o português, que era considerado piroso, como se dizia na altura.”

Inciado no piano e depois na guitarra, Tozé Brito acabaria por se tornar baixista. “Quando formámos o Pop Five, tínhamos três guitarristas, um baterista e um teclista, não havia baixo. Os outros dois guitarristas, o Paulo Godinho, irmão do Sérgio Godinho, e o Pi Vareta, disseram que queriam tocar guitarra. E eu disse: ‘OK, pronto, ofereço-me para aprender baixo.’ E em boa hora o fiz, porque descobri um instrumento fascinante. Não foi fácil, mas deu-me imenso prazer.” E não foi fácil porque ele não tinha com quem aprender. “Tinha de ir ver e ouvir grupos ao vivo e estar atento ao que o baixista estava a fazer, olhar para as mãos dele, segui-lo durante uma hora ou duas.”

Foto
Tózé Brito, de casaco ao centro, numa fotografia de promoção do Quarteto 1111 DR

E ia ouvir quem? Os Nómadas, por exemplo, “grupo muito conhecido no Porto”: “Nós no Pop Five tínhamos 15, 16 anos; eles teriam 18, 19. Na altura fazia imensa diferença.” Assim aprendeu a tocar baixo. E assim nasceu, por exemplo, o tema que viria depois a ser o indicativo do conhecido programa radiofónico Página Um, da Rádio Renascença. “Nós ensaiávamos na torre dos bombeiros de Leça da Palmeira. Cheguei lá um dia um bocadinho mais cedo e o Álvaro Azevedo estava a fazer um ritmo sozinho, que é o ritmo do Page one. Então peguei no baixo, e por cima daquilo comecei a fazer a linha de baixo que entra logo a seguir. Estivemos os dois uma hora naquilo, divertidíssimos. À medida que foram chegando os outros, juntaram-se e a música ficou feita.” Mas era um instrumental e sem título. Só quando José Manuel Nunes lhes pediu para o Página Um um tema musical que servisse de indicativo para o programa é que lhe juntaram uma letra. E ficou, por isso, Page one.

O passo seguinte deu-o aos 18 anos, em 1969, ao entrar para o Quarteto 1111, de José Cid, em substituição de Mário Rui Terra, que tinha sido mobilizado para a guerra colonial. “O Zé Cid revolucionou-me a cabeça. Quando cheguei ao Quarteto, com 18 anos, não tinha qualquer hábito de ouvir música portuguesa. Nem gostava. Andava a ouvir Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, Simon & Garfunkel, e não estava nada virado para aí. Até ouvia mais depressa música francesa ou italiana do que portuguesa. Mas quando cheguei ao 1111, o Zé Cid disse-me: aqui cantamos todos em português. E escrevemos em português.” E deu-lhe um texto do Gil Vicente para musicar. Acabaram, aliás, por musicá-los os dois. “Curiosamente foi essa canção, Todo o mundo e ninguém, que o Jay-Z escolheu no ano passado para usar, como sample, no seu novo álbum [4:44]!”

 

Desertor, com a ajuda de um pide

Mudara-se, entretanto, do Porto para Cascais. E chegou o tempo da tropa. Fez a recruta em 1972, nas Caldas da Rainha, e tentou depois entrar no grupo “Alerta Está”, soldados que iam actuar para as tropas por serem artistas de várias áreas, da música ao circo (“o Paulo de Carvalho e o Fernando Tordo, dos Sheiks, estavam lá”). Mas recusaram-lhe a entrada porque o 1111 tinha canções proibidas. Então escapou-se para Londres. Mas antes, estranhamente, avisou toda a gente no quartel. “Eu tinha uma relação excelente com furriéis, capitães, alferes, majores. E fui despedir-me deles todos, uma semana antes.” Não o perseguiram. Só lhe disseram “não faças isso”. Mas ele fez, porque a sua especialidade era em armas pesadas, passaporte garantido para a frente de combate.

Quem o levou a Londres? Um pide. “Nós passávamos férias em Moledo do Minho. E o pessoal da fronteira trabalhava para a PIDE. O meu pai conhecia-os, do café, falou com um e eu passei dentro do carro dele. Ele veio-me buscar a Caminha, fomos para Valença do Minho, passámos a fronteira para Tui. Ele disse aos colegas, na fronteira, ‘vou ali a Tui e venho já’. E eu sentado ao lado dele, a ouvir um relato do Benfica. Em Tui, o meu pai já estava à espera, acertou contas com ele [pagou-lhe dez contos, que na altura ainda era dinheiro] e eu no carro a fazer de conta que não via, que não era nada comigo. Depois fomos de carro até Madrid e ali apanhei o avião para Londres.”

Podia ter sido detido em Espanha, ao abrigo do acordo que havia entre os dois governos ditatoriais, mas valeu-lhe ter viajado com o 1111 para vários países e ter um passaporte “cheio de carimbos”. Por isso no aeroporto espanhol não estranharam e deixaram-no ir. E assim se tornou desertor. O que lhe valeu algumas visitas da Polícia Militar a casa dos pais. Mas até isso foi caricato. Ele saiu de Portugal antes do Natal de 1972 e os Green Windows (de que ele já fazia parte) foram logo a seguir a Londres gravar a canção 20 anos. “O Nuno Gomes dos Santos, jornalista, esteve connosco na gravação e fez umas reportagens que foram publicadas em Portugal. A minha mãe guardou os jornais religiosamente. E de cada vez que os polícias militares lá iam bater à porta, ela mostrava-lhes os jornais e dizia calmamente: ‘Ele está em Londres, não sei mais nada.’” Um até tinha jogado andebol com ele, no Porto, eram amigos, mas lá fazia a rábula.

Foto
Com José Cid, num concerto em Tóquio do Quarteto 1111, em 1971 DR

Depois do 25 de Abril não escapou. Cumpriu o serviço militar, mas sem ser penalizado. “Levei com a tropa toda: Tavira, Mafra, Queluz. Mas aos fins-de semana continuava a tocar.” Na tentativa de golpe militar de 25 de Novembro de 1975 estava em Queluz e foi saneado. “O RIOQ (Regimento de Infantaria Operacional de Queluz) era afecto ao Copcon e houve uma ordem para travar a marcha dos comandos da Amadora, do Jaime Neves, ordem essa que não foi cumprida. No dia seguinte, rua; acabou a tropa!” Desse tempo irrepetível ainda recorda as revistas a carros, para ver se tinham armas. Mas também a dinamização cultural e as ajudas à populações. “Em Castro Marim, na serra, havia povoações sem luz eléctrica ou água potável. E essa foi uma das missões mais nobres que fizemos: fazer puxadas de electricidade ou puxar a água do poço e fazer a canalização. Foi muito gratificante, sentíamos que estávamos a fazer algo de concreto.”

 

“Nunca fiz censura estética”

Em 1976, com o Quarteto 1111 já sem José Cid, esteve a fazer a ópera-rock Godspell “quase o ano todo”. Primeiro em Lisboa, no Teatro Villaret, e depois no Porto. E a seguir esteve na base da criação dos Gemini, um projecto musical muito diferente dos anteriores. “Foi uma mudança de direcção completa, assumidamente mercantilista, no sentido de que todos nós, casados e com filhos, precisávamos de ganhar dinheiro.” E assim voltou aos Festivais da Canção, onde se estreara em 1972 com Se quiseres ouvir cantar (ficou em 5.º lugar). Lançou ainda outros grupos, como as Cocktail ou as Doce.

Com os Gemini, defendeu Portugal no coração (1977) e Dai li dou (1978, que foi à Eurovisão em Paris). Mas também concluiu que “não era por ali” o caminho. E, já ligado a uma editora, como A&R (na Polygram), grava um disco com Paulo de Carvalho e começa a “formar catálogo”: “Tinha o Carlos do Carmo e fui buscar o Carlos Paredes, o Sérgio Godinho, o Jorge Palma, mas ao mesmo tempo tinha as Doce, o Vítor Espadinha, o Dino Meira. Nunca fiz censura estética. Desde que as coisas fossem bem feitas no seu espaço e em função do público a que se dirigiam.” O disco com Paulo de Carvalho, Cantar de Amigos (1979) nasce de uma “imposição” da editora de Paulo, a Nova: se Tozé Brito o queria levar para a Polygram, tinha de gravar primeiro um disco com ele para a Nova. E assim foi. As canções que cada um compôs foram cantadas pelo outro, ficando célebre o dueto de ambos: Olá, então como vais.

Foto
Ao centro, com os Gemini, em 1978 DR

 

“A música é um negócio, sempre foi”

É nesse período que Tozé Brito reavalia o seu trabalho e se fixa como compositor: “É o que fiz de melhor, de mais importante, e no fundo aquilo que gosto de fazer. O trabalho como músico divertiu-me muito, mas nunca me considerei nem cantor nem grande músico. Cumpria os mínimos, e há quem diga que como baixista até era bom. Mas começo a pensar: gosto é de escrever. E havia muita gente a pedir-me canções, de todos os quadrantes: fado, pop, rock. Cresci a pensar em canções, não em músicas.”

E são, sobretudo, canções o que ele faz. Na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), a cuja administração pertence desde 2010, registou mais de 500, para vários intérpretes. Retalhos, que Carlos do Carmo cantou com letra de Ary dos Santos, é uma composição dele, como também levam o seu nome Vinte anos (Green Windows) ou Amanhã de manhã (Doce), ou as letras para as séries infantis Abelha Maia, Heidi ou Dartacão. Mas também escreve para fadistas da nova geração, como Ricardo Ribeiro ou Ana Moura.

Foto
Com as Doce, grupo que ajudou a fundar, em 1979 DR

Ana Moura é, aliás, um dos casos que recorda dos tempos em que esteve na indústria musical (foi A&R da Polygram, administrador da BMG e da Universal, e, pelo meio teve duas companhias independentes, próprias). E, para além da fadista, recorda os Xutos e Pontapés. “Assinei com eles em 1987, quando já estavam a tocar há sete anos e enchiam o Rock Rendez Vous com 600 pessoas a cantarem as canções do princípio ao fim. As editoras tinham medo de assinar com eles porque achavam que era uma zona muito complexa, muito perigosa. Fui ouvi-los, e quanto mais os ouvia mais gostava deles. Quando lhes disse que queria assinar contrato, até eles ficaram surpreendidos!” Quanto à Ana Moura, foi tudo decidido apenas num dia, em 2001. Tozé Brito, então na Universal, recebeu uma maqueta. “Era de um grupo fraquinho, de Coruche, sem qualquer interesse especial a não ser uma voz feminina a cantar umas coisas que não tinham nada a ver com a voz dela. Achei que cantava incrivelmente bem e pedi informações. Quando tive a primeira conversa com ela, disse-me que também cantava fado, no Senhor Vinho, às quintas-feiras. Fui ouvi-la e, nessa mesma noite em que a ouvi, fechei contrato com ela.”

Esse tempo da indústria, com os seus defeitos e virtudes, mudou radicalmente. “A grande mudança de paradigma”, diz Tozé Brito, “dá-se com uma geração que cresce com a gratuitidade, habituada a não ter de pagar para ouvir música ou para fazer downloads”. Agora, reconhece, as editoras arriscam muito menos. “Ficam à espera: deixa lá ver se isto pega. Acomodaram-se e agora dizem ao artista ‘traga tudo feito’. A não ser quando é um projecto em que acreditam muito. Aí, pegam-lhe de raiz e pagam, até pagam bem.”

Antes, diz, “havia um crivo apertado, com quatro ou cinco editoras. Ouvi milhares de maquetas e dessas assinei com umas dezenas de artistas. Isto quer dizer que tínhamos de estar muito atentos ao que ouvíamos. E quando as coisas apareciam, não tinham de ser todas boas, não tinham de agradar todas à crítica porque cada crítico tem o seu gosto e tem o direito de o ter”. O objectivo era editar projectos que rentabilizassem “os custos de gravação, de marketing e distribuição”. E depois vinha o lucro. “Quando se dirige uma multinacional, percebe-se de uma forma violenta que a música é um negócio, é uma indústria, sempre foi e continua a ser. O capital continua a estar por detrás disto tudo, e não é a mandar na música, é a mandar no planeta!”

Foto
Com os Pop Five Music Incorporated, em 1968, ao lado de Paulo Godinho, à esquerda, e David Ferreira DR

 

Nu e cru, com o novo disco

A Memória do Amor, onze canções onde o amor é tema. Marca do compositor? “Tive no 1111 uma experiência muito positiva com a escrita de canções proibidas pela censura, numa fase em que era um jovem que acreditava que escrevendo aquelas canções estava a contribuir para mudar o mundo. Mas fui-de desencantando em relação a isso. Cresci, amadureci, e percebi que não fizeram diferença absolutamente nenhuma. Por mais que vá à procura de canções na história da música, não encontro nenhuma que tenha mudado o mundo, socialmente, politicamente. Podem ter ajudado, um pouquinho, mas as mudanças de fundo não passam pelas canções, passam por outros valores e por outros poderes que não o da música.” Começou, por isso, a ter o amor como referência. E isso tem-se reflectido nas canções que tem escrito, bem como neste disco mais recente. “Não estamos a falar do amor romântico, mas do amor num sentido mais lato, onde entra a amizade e o respeito, acima de tudo. É esse amor que defendo.”

O último disco, esse, nasce de uma introspecção: “É um disco que dedico a mim próprio, a momentos especiais da minha vida e a canções que têm um significado especial para mim. Foi este o critério de escolha. É um disco do autor para o autor, acima de tudo.” Em 11 temas, dos quais três originais, gravou duetos com António Zambujo, Ana Moura, Ana Gomes e Pedro Vaz (seu genro, que assegura os arranjos e a produção). E teve uma preocupação, em relação ao tipo de registo. “A minha voz está gravada aqui como nunca esteve em nenhum outro disco: de uma forma extremamente crua, sem efeitos, sem reverberações, tudo aquilo que a gente pode fazer em estúdio. Pus de lado essa parafernália, pedi para gravar colado ao microfone, ao primeiro take. E o que ficar ficou. Há pequenas imperfeições, mas sou eu com 66 anos a cantar 50 anos depois do meu primeiro disco. Porque os primeiros com o 1111 foram gravados assim: numa garagem, com dois Revox, a música toda ao mesmo tempo. E quis gravar outra vez com essa pureza, que os meus outros discos de estúdio, muito tratados, não têm. Nu e cru.”

Foto
Em 1985 DR
Sugerir correcção
Ler 3 comentários