“Há em Portugal uma cultura de compadrio”
Conceição Pequito conclui que a qualidade da democracia portuguesa é má porque os partidos monopolizam as listas eleitorais e vivem da cartelização do Estado. Alerta também para o outsourcing legislativo do Parlamento associado aos deputados-advogados.
Num país onde não há populismo, os impulsos populistas são canalizados pelo Presidente com a sua proximidade, defende Conceição Pequito Teixeira, autora do livro Qualidade da Democracia Portuguesa, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no qual identifica as razões da má qualidade da democracia portuguesa. Em entrevista ao PÚBLICO, a professora alerta para a importância do pacote sobre transparência e defende que o “outsourcing legislativo” é a “devolução de um poder a privados”.
No seu livro diz que a qualidade da democracia é má. Porquê?
Há uma esmagadora maioria dos cidadãos que apoia em abstracto o regime político, o que não acontece na generalidade das novas democracias surgidas após a queda do Muro de Berlim. Esta adesão quase total aos princípios e aos valores basilares da democracia num país que teve 48 anos de Estado Novo, este apoio normativo ao regime é importante.
Mas depois a qualidade é má...
Nos indicadores sobre a percepção dos cidadãos em relação a como funciona a democracia na prática, as suas principais instituições ou a classe política, a avaliação não podia ser pior do que é e, contrariamente às democracias mais recentes, mostramo-nos bastante mais envelhecidos. Os níveis de desconfiança em relação aos partidos são muito superiores.
Conclui que a responsabilidade primordial da má qualidade da democracia é da partidocracia. De que forma os partidos estão a prejudicar a democracia?
Através do monopólio da representação política que continuam a ter para a Assembleia da República. Falo disto, mas não é no sentido de acabar com ele, no que se refere a só os partidos poderem apresentar candidatos à Assembleia e não poder haver listas de grupos de cidadãos como há nas autárquicas. Tenho muitas dúvidas que a solução pudesse passar por aí, acho-a muito difícil e caótica. O monopólio dos partidos, se fosse assumido com um conjunto de mecanismos que não o tornassem por si só um bloqueio, seria interessante.
É nesse sentido que fala da alteração da lei eleitoral?
É. Se os partidos, ao terem de escolher os candidatos, tivessem normas claras, precisas, objectivas de como escolher, de como os ordenar nas suas listas. Repare a situação que temos, que é muito rara nas democracias europeias: quando votamos nas legislativas, estamos a votar nas decisões que o partido tomou dentro de muros sobre quem é candidato e o seu lugar na lista. E, quando votamos, limitamo-nos a ratificar as escolhas feitas por outrem. Por isso é que digo que o interessante é partilhar entre os partidos e os cidadãos este poder de escolher quem nos representa no Parlamento.
Fala de as pessoas poderem ordenar os nomes?
Exactamente. Ter-se-ia de fazer uma divisão do território eleitoral diferente. O interessante era o território ser redesenhado com círculos eleitorais com uma magnitude entre seis a dez candidatos e que o eleitor no boletim tivesse o nome do partido, os nomes dos candidatos e pudesse reordenar as escolhas feitas pelo partido. Assim, as escolhas dos cidadão efectivamente influenciavam quem entrava no Parlamento.
A discussão é recorrente, já houve estudos e propostas do PS e do PSD nunca aprovados. Os partidos não querem mudar as regras do jogo?
Os partidos não querem mudar as regras do jogo. A discussão já foi muito viva, agora é menos, porque as pessoas já perceberam que não passa de retórica. Os principais partidos têm ganhos com este sistema eleitoral. Sendo proporcional, beneficia os maiores partidos devido ao método de Hondt. E os mais pequenos também não têm muita simpatia por fórmulas que vão no sentido maioritário. Mas o problema sério que nós temos é de proximidade do eleito face ao eleitor.
No livro levanta também o problema da cartelização.
Um dos desvios partidocráticos que me parece mais sensível é o da cartelização dos maiores partidos. Já não se quer chegar só ao Parlamento, quer-se sobretudo chegar ao governo, porque temos cada vez mais a colonização do Estado pelos maiores partidos. A colocação de pessoal na administração pública intermédia, de topo, no sector empresarial do Estado, aquilo que são as ditas “profissões parapolíticas”. O que os americanos chamam o spoil system: quer-se ganhar as eleições para se distribuírem os despojos entre os vencedores. Os partidos vivem da patrimonialização do Estado.
Uma das suas conclusões é que não há fenómenos populistas. A popularidade do Presidente é uma canalização dos impulsos populistas de seguir um líder?
Tem tudo que ver. A partir de 2014, por toda a Europa, os partidos de recorte populista ganharam lugares. O populismo não é uma ideologia, tanto pode ser utilizado pela esquerda como pela direita. A divisão que o populismo faz é entre os que se apropriam da soberania do povo e a vontade geral do povo, como se fossem dois mundos incomunicáveis e intocáveis. A concepção da casta dos políticos e o “eles” e “nós”, é esta a fronteira.
E que é mitificada.
Exactamente. Esse discurso é também muito facilitado pelos meios de comunicação social, pela fulanização e pela simplificação. O populismo é um discurso simplificado, apresenta soluções fáceis para problemas complexos. E é caracterizado também pela proximidade entre os governantes e os governados, como se isso fosse um sinal de desapego ao poder, de o político continuar próximo das preocupações das pessoas. Acho que Marcelo Rebelo de Sousa encarnou esse papel da proximidade, a que ele acrescenta os afectos, mas podemos chamar-lhe uma proximidade popular e populista. Os afectos são talvez um populismo lusitano.
Mas essa canalização não é por razões puramente populistas?
O Presidente achou a fórmula certa, que é a de uma magistratura de proximidade, a que ele vai buscar o poder de que necessita em cada momento, como quando foi de Pedrógão Grande, em que o usou sem dó nem piedade. Ele legitima a sua interferência em áreas do Governo com base nessa popularidade de proximidade. Não lhe chamaria populismo, porque além da proximidade ele não usa só temas fáceis. O discurso dele não é tão simples.
Ou seja, não é populista mas canalizou os impulsos populistas?
Canaliza completamente. Nós, até ver, não temos populismo.
Como vê o pacote da transparência?
Juntaram muitos projectos de lei sobre questões que são contíguas, mas que deviam ser tratadas aprofundadamente e separadamente. Todas elas são importante. Talvez a mais importante não seja tanto a da regulamentação do lobbying; se for bem legislado, não acho mal. Mas o que descaracteriza a actividade dos órgãos de soberania é o outsourcing legislativo. E aqui entra a questão inevitável do deputado-advogado. De facto, temos um Parlamento cujas leis, as mais importantes, são feitas fora do próprio Parlamento, encomendadas por ajuste directo a grandes escritórios de advogados, nos quais trabalham advogados que são deputados. Então, quem faz as leis fora do Parlamento, o que já é uma aberração, vem aprová-las dentro do Parlamento.
Esse conflito de interesses deve ser travado?
Devia. Até admitia o outsourcing a título excepcional, quando as matérias são demasiadamente complexas. Agora, em termos recorrentes, acho um desvirtuar do poder legislativo e regulatório do Parlamento. É a devolução de um poder a privados, com tudo o que isto propícia a nível de conflito de interesses, de tráfico de influências. Parece-me o problema mais delicado. Havia uma possibilidade que era dotar de facto o Parlamento de um núcleo de assessoria jurídica especializada comum a todos.
Mas há assessorias.
Existem, por grupos parlamentares, e há assessores que podem ser assim chamados, mas no fundo são pessoas do partido, a quem se ofereceu um determinado tacho: “Tu fazes-me a campanha e eu levo-te para o Parlamento como assessor.” Mas com que qualidade? Com que especificidade? Consulte o perfil dos assessores e não encontra a matéria-prima de que precisa para legislar bem. E legislar mal significa a necessidade de rever leis para que se possam interpretar sem ser de forma dúbia.
E a exclusividade?
Sou contra a exclusividade da função parlamentar. Se eles já se dissociam tanto da sociedade, criar demasiadas incapacidades e incompatibilidades é afastar do Parlamento muitas profissões que são lá precisas. É bom que as pessoas tenham uma profissão, que a exerçam, que retornem a ela. Encararem a política como uma missão meritória, mas transitória. Quem quiser fazer dela a sua própria carreira optará pela exclusividade. Agora, uma exclusividade imposta pelo legislador parece-me um apelo a convidar os piores que estão nos partidos e a arranjar-lhes lugar no Parlamento. E se já não são nada bons os que lá estão...
Como vê os casos dos membros do Governo que se demitiram por investigações do Ministério Público ou por razões de ética?
Vamos ver muitos mais casos, se o pacote da transparência for aprovado. Quanto mais regras se fazem, mais regras se infringem. O que falta? Falta bom senso dos próprios. Há uma cultura na classe política portuguesa, independentemente até da qualificação académica, do estilo de vida que possa ter, que é o sentimento de impunidade. Os políticos em Portugal têm um desfasamento que é ainda não terem interiorizado que o tempo dos media é muito mais rápido, muito mais célere e escrutinador do que era. Eles pensam sempre que não é possível saber-se o que fazem, não há quem saiba. E, hoje, os media fazem um controlo e uma fiscalização política não só sérios, como a um tempo vertiginoso. Não há tempo para o próprio conceber a sua autodefesa. Por isso, é muito bom que, antes de aceitar presentes e convites, o político ponha o bom senso a funcionar e pense: “Posso fazê-lo, mas isto vai ser sabido.” A opacidade do exercício da política é muito própria do português, a ideia de que há coisas que não se sabem. Tudo se sabe hoje, os media sabem em tempo mais do que útil e escrutinam-no.
Em Inglaterra essa questão não se põe. Porque é que os políticos portugueses não têm esse bom senso?
Exactamente. Porque a cultura política inglesa não tem nada que ver com a nossa. Ainda agora um governante inglês se demitiu por chegar atrasado ao Parlamento para responder a uma pergunta. Acho que é excesso de zelo. Não queria tanto. Há em Portugal uma cultura de compadrio e de “aquele fez, eu faço, tu farás, nós fazemos”. Há sempre muita conjugação do verbo fazer nos diversos tempos verbais. É uma questão cultural que não é só da classe política.