Social-democracia à portuguesa
O Bloco de Esquerda trata o PS com o mesmo desprezo moral com que a extrema-esquerda tratou ao longo de todo o século XX a esquerda de orientação liberal e democrática.
1.Com um intervalo de poucos dias, Pedro Nuno Santos publicou um interessante artigo sobre o futuro da social-democracia e Rui Rio iniciou o discurso de encerramento do congresso do seu partido com uma longa citação de Helmut Schmidt, figura maior da corrente mais moderada da social-democracia alemã contemporânea. Numa altura em que a esquerda democrática atravessa uma grave crise no plano europeu, estas manifestações de afeição lusitana pela social-democracia não deixam de ser curiosas. Curiosas e importantes, pelo que revelam do estado actual da nossa vida política e pelo que indiciam acerca da evolução próxima da mesma.
O texto do actual Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares acerta na doutrina, mas equivoca-se no plano político e estratégico. A prova desse equívoco está nas prontas respostas que lhe foram dadas por Mariana e Joana Mortágua em dois textos de capital importância. Nessa espécie de correspondência não premeditada evidencia-se com toda a clareza o carácter meramente conjuntural e precário da designada “geringonça”.
Pedro Nuno Santos não é uma figura qualquer na presente solução parlamentar que viabiliza o Governo do PS. Ele é tão só um dos seus maiores inspiradores, o seu principal executante prático e o seu mais acérrimo defensor. Precisamente nessa linha, optou por escrever um texto onde discorre com inteligência e serenidade acerca das principais questões que se colocam presentemente à corrente social-democrata no nosso país, procurando articulá-las – e aqui, a meu ver, erradamente – com a permanência a médio e longo prazo de um Governo sustentado numa coligação com a extrema-esquerda parlamentar. As respostas de Mariana e Joana Mortágua não poderiam ser mais letais.
Em registos diferentes, as jovens e reconhecidamente brilhantes deputadas do Bloco de Esquerda coincidiram na execração de todo o passado do PS, na demonização da União Europeia e da NATO e na contestação de aspectos essenciais do percurso histórico da social-democracia europeia. Deixaram bem claro que o que distingue o Bloco do PS, incluindo a sua ala supostamente mais radical, não são questões banais mas sim uma visão do mundo nas suas múltiplas dimensões. Como tal, qualquer entendimento entre estes dois partidos só pode ser percebido como acidental. No fundo, o Bloco de Esquerda trata o PS com o mesmo desprezo moral com que a extrema-esquerda tratou ao longo de todo o século XX a esquerda de orientação liberal e democrática. A linha de demarcação permanece a mesma: de um lado o antiliberalismo, a desvalorização ontológica do indivíduo, o culto da utopia revolucionária, a desqualificação dos mecanismos formais da democracia representativa, a apologia da estatização da economia; do outro a afirmação da prevalência da liberdade individual, a defesa de uma intervenção limitada do Estado como factor de promoção da igualdade, a confiança na democracia representativa e a rejeição de qualquer tipo de utopia terminal e absoluta. Do ponto de vista das opções políticas concretas as divergências são também muito evidentes. A extrema-esquerda abomina o presente projecto político europeu, perfilha a saída da NATO e advoga um neoisolacionismo que não poderia trazer senão infortúnios. Já o PS permanece estruturalmente associado ao projecto europeu, valoriza a presença na NATO e considera de fundamental importância a participação nacional no espaço cultural ocidental.
Poderemos todos continuar a fingir que nada disto é importante, que se pode construir um projecto comum apesar destas insuperáveis e reiteradas divergências. Poderemos fazê-lo se aceitarmos reduzir o discurso político à dimensão de um embuste. O que a troca de correspondência entre Pedro Nuno Santos e as dirigentes do Bloco de Esquerda veio tornar claro foi algo de muito simples: o futuro da esquerda democrática e liberal portuguesa não passa pela manutenção dos entendimentos contranatura – que só circunstâncias exepcionais tornaram possíveis – com uma extrema-esquerda agarrada a concepções absolutamente conflituantes com a tradição da social-democracia europeia desde há mais de cem anos.
2. Já Rui Rio parece querer retomar a velha e controversa aspiração da filiação democrática do seu partido. O PSD nunca poderá ser, por razões de sociologia eleitoral, um partido genuinamente social-democrata, mas não está impedido de se reclamar parcialmente dessa inspiração. A sua identidade complexa radica precisamente na articulação entre a social-democracia, o personalismo cristão, o conservadorismo e uma certa dose de liberalismo económico. Rio, por convicção e por intuição, optou no congresso do passado fim-de-semana por realçar a componente social-democrata devidamente mesclada com a ideia de grande rigor na gestão das finanças públicas e de especial exigência em matérias como a educação ou a responsabilidade individual. Não citou Helmut Schmidt por acaso. Fê-lo para se distanciar do passado mais recente do PSD, devida ou indevidamente rotulado de excessivamente liberal, e para se demarcar daquilo que considera ser uma excessiva “esquerdização” do PS. Essa opção pareceu-me bastante inteligente, e, de resto, o discurso de Rui Rio foi consistente.
É inquestionável que a vida política portuguesa se prepara para entrar numa nova fase. Um certo nervosismo parece ter tomado conta dos sectores mais extremistas, seja à esquerda, seja à direita.
Creio francamente que o país está hoje melhor do que estava há alguns meses atrás. Há menos rigidez no funcionamento dos sistemas político e partidário e abrem-se novas perspectivas de diálogo, mais consentâneas, a prazo, com a perspectiva de obtenção das respostas que as verdadeiras necessidades do país exigem.