Portugal “assume a responsabilidade” pelo massacre de Batepá
Pela primeira vez, um Presidente da República visita o lugar onde pelo menos 400 pessoas morreram às mãos de um governador português em São Tomé, há 65 anos.
São mais de 400 os nomes das vítimas mortais inscritos no Memorial dos Heróis da Liberdade, caídos à mão de um governador português há 65 anos aqui em Fernão Dias, a meia hora de São Tomé. Na primeira vez que um Presidente da República de Portugal visita o lugar, não houve um pedido de desculpas pelo massacre de Batepá, mas um assumir de responsabilidade, uma coroa de flores e um minuto de silêncio.
“Vim aqui homenagear todos aqueles que lutaram pela liberdade e em particular todos os que morreram pela liberdade faz agora precisamente 65 anos”, disse Marcelo Rebelo de Sousa depois de ter colocado uma coroa de flores no monumento, que não evoca a dor, mas as ondas do mar que, ali ao lado, foram testemunhas dos horrores daquele tempo.
“Foi aqui que os nossos antepassados sofreram massacres, levavam chibatadas e essas coisas todas”, conta Carlos, vinte e poucos anos, um dos dançarinos do grupo Leonino que desta vez veio cantar e dançar para o chefe de Estado português. “É um marco histórico, porque muitas pessoas morreram aqui, muito sangue e muitas lágrimas desceram aqui”. Hoje é símbolo da luta pela liberdade e o dia 3 de Fevereiro, em que tudo começo, o dia nacional do país.
Marcelo não escamoteia as culpas. “Portugal assume a sua história naquilo que tem de bom e de mau, e assume nomeadamente, neste instante e neste memorial, aquilo que foi o sacrifício da vida e o desrespeito da dignidade de pessoas e comunidades”, disse. “Assume essa responsabilidade olhando para o passado, mas ao mesmo tempo para o presente e o futuro”.
A mensagem era não ficar preso ao passado, nem olhar para ele com os olhos do presente: “É reconhecendo o que foi o passado, construindo todos os dias o presente e edificando o futuro fraternal, de amizade profunda e constante entre Estados, pátrias e povos, que estaremos uns e outros a construir o mesmo desígnio: ter cada pessoa concreta como princípio e fim da nossa actividade colectiva”.
Marcelo Rebelo de Sousa já se tinha referido ao massacre de Batepá nos brindes do jantar oficial oferecido, na véspera, pelo homólogo santomense, quando evocou “os episódios de sofrimento e opressão que fazem parte do passado comum”. “Assumimos tudo de bom e de mau que povoou esse passado comum, e nessa História cabe, na sua brutal violência, o massacre de Batepá, há 65 anos”, disse.
Também não pediu desculpa, mas considerou-o “intolerável e condenável”, nestes termos: “E nem o facto de o vivido o ter sido noutros tempos, com outras visões, nos isenta de reconhecermos todo o peso intolerável e condenável de sacrifício de pessoas e comunidades”. E no mesmo passo evocou, “com respeito e admiração, os que lutaram pela liberdade e os que perderam a vida nessa luta”.
Os jovens do grupo Leonino que nesta quarta-feira cantaram e dançaram para o Presidente da antiga metrópole colonizadora, também têm um sonho de futuro: ir a Fátima, como católicos que são, mostrar as suas marchas tropicais.
Mais tarde, questionado sobre a existência de um relatório sobre o massacre que terá sido feito no início da democracia mas que ainda estaria classificado, o ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou que qualquer documento pode ser tornado público 30 anos depois da classificação e que se iria informar da situação ao chegar a Lisboa. Até porque “os documentos não são classificados por motivos circunstanciais” , frisou Augusto Santos Silva.
O pêndulo e o árbitro
Marcelo Rebelo de Sousa começou o segundo dia de visita oficial na Escola Portuguesa e depois na Universidade, onde a turbulência na vida política são-tomense veio ao de cima. Um aluno de Direito acusou São Tomé de estar a viver num “sistema hitleriano, em que uma mesma pessoa é a Constituição, o Presidente da República, da Assembleia e do Tribunal Constitucional”; outro pediu “conselho” sobre o que fazer a um professor a quem faltarão qualificações; e uma recém-licenciada perguntou porque é que são os são-tomenses a ir estudar para Portugal e não os professores a fazer a viagem em sentido contrário.
Marcelo foi pedagógico e diplomático. Lembrou estar em visita de Estado e que não se deve pronunciar sobre a vida interna do Estado visitado, mas lá acabou por dizer que “a democracia tem de ser construída todos os dias, como a independência”, e que só há uma forma de se construir uma sociedade civil forte: “Fazendo, intervindo”. Salientou os pontos fortes da cooperação portuguesa, prometendo que será reforçada ainda este ano. E no final, deixou um conselho: “Não gostam de um professor? De um político? Lembrem-se: tudo isso passa. Só a capacidade de criar e de sonhar é que não".
À tarde, o chefe de Estado subiu a Neves, para conhecer a obra das Irmãs Franciscanas numa zona remota e ainda mais pobre da ilha, que dá educação a 1200 crianças, da creche à 5.ª classe, mantém um lar de idosos e anima actividades desportivas. No campo do Benfica local, entraram duas equipas de miúdos – alguns com sapatilha só no pé direito - para um jogo de futebol de cinco e Marcelo foi o árbitro.
No final, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, matou saudades do comentário político: “O Presidente cumpriu as suas funções de árbitro de forma totalmente imparcial e não teve que exercer a sua função de poder moderador, porque os jogadores portaram-se com o maior fair play. Tal como acontece em Portugal”.