“Avenida Q”: o que explica o êxito de um musical para “millennials”?
É um espectáculo musical com marionetas, mas não é para crianças e chega a ter linguagem ofensiva. O que justifica que mais de 61 mil pessoas já tenham visto “Avenida Q”, em palco há mais de um ano? Até 25 de Fevereiro, no Porto, ainda é possível perceber porquê
Para mais de 61 mil espectadores, este musical não precisa de apresentação. Para os outros, continua um mistério. A Avenida Q estreou-se nos Estados Unidos em 2003, mas só chegou a Portugal 14 anos depois. Sinónimo de sucesso na bilheteira, o espectáculo continuou a angariar cada vez mais público — e agora vai mesmo finalizar um capítulo no Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Mas o que é que explica um ano de salas cheias?
É recorrente rever a mesma peça quando gosta — mas “duas vezes, no máximo”. “Uma para apreciar e outra para ter uma comparação dentro do espectáculo.” Quem o diz é André Galvão, de 30 anos, residente no Barreiro, que já viu a Avenida Q 16 vezes — e pode não ficar por aqui. André conheceu este espectáculo em 2010 ou 2011, quando viu a peça original em Londres, e estava longe de imaginar que o musical fosse adaptado à língua e à cultura portuguesas. Assistia à versão em vídeo do musical, sabia de cor as letras de todo o repertório musical. Pouco antes da estreia em Portugal, em Fevereiro de 2017, diz ter sabido por amigos que a adaptação iria estar em cena no Teatro Trindade, em Lisboa. Mas, mesmo assim, perdeu a estreia. Na primeira vez em que assistiu à peça, em Lisboa, achou-a “boa”; na segunda, já começou “a gostar”.
"Este é um espectáculo sobre o coming of age, as dores do crescimento: a dificuldade em lidar com a realidade, em oposição a uma imagem que criamos de que a vida, se trabalharmos, se sonharmos e se tivermos coragem, será maravilhosa", explica Rui Melo, o encenador que, a par de Henrique Dias, adaptou as músicas. "Essa ironia agradou-me muito, achei-a muito pertinente", justifica.
"A peça foca em assuntos como o racismo e a homossexualidade, mas de uma forma despretensiosa", conta o encenador. "Todas aquelas personagens estão em sofrimento e têm problemas pessoais graves: um está desempregado e não sabe o que fazer da vida, outro acabou o curso e acha que vai arranjar emprego (e é despedido mesmo antes de começar), há um homossexual conservador de direita que não consegue dar o passo de sair do armário, uma figura que já foi muito popular no seu país e que foi roubado pelos seus pais”, enumera.
Vera Borges, investigadora no ISCTE na área da Sociologia da Cultura, não tem dúvidas quanto aos factores que ajudaram a ampliar o fenómeno. ”Há uma série de condicionantes que estão a jogar em força, de entre os quais o texto com piadas, a divulgação forte (…), os actores que já conhecemos” e o sentimento de empatia para com os personagens. E depois há o passa-palavra, que tem nas redes sociais uma rampa para atingir grande parte do público. "As pessoas querem ver uma coisa divertida, vão em grupo, vão rir-se”, explica Vera. “Temos estudado que o grupo de amigos é, de facto, uma das coisas mais importantes.” E o contínuo sucesso, de onde vem? Da confiança. "Isto vai-se criando. Os primeiros [espectadores] foram começando [a ir] e depois é a Internet a funcionar e os actores a fazerem divulgação em pequenos grupos.”
A vizinhança que toda a gente quer — ou não?
Para Rui Melo e Henrique Dias, a aventura da Avenida Q começou em 2004. Encenador e adaptador rumaram a Nova Iorque e lá assistiram ao espectáculo que, naquele ano, venceu três prémios Tony, os galardões que distinguem o que de melhor se faz no teatro norte-americano. A partir dali, o desejo de trazer o musical para Portugal aumentou. "Quando cheguei cá falei com uma série de produtores, que me disseram: ‘Isso é caríssimo', ‘Bonecos em palco?' (...) Andei um ou dois anos a ver se conseguia arranjar alguém para fazer aquilo cá”, recorda Henrique Dias, para quem, na altura, a adaptação da peça era apenas um sonho. "Todos disseram 'não' e acabei por perder o entusiamo.” Até que a oportunidade chegou, pelas mãos de Gonçalo Castel-Branco e da Força de Produção.
A história começa com Luís (pela voz de Samuel Alves), um recém-licenciado em línguas que anda à procura de casa. Não conseguindo suportar o peso das rendas, acaba por parar na Avenida Q, onde arrenda um condomínio-fechado — que, na verdade, não o é. Na vizinhança, descobre que existe um casal, Maria e Tozé (Gabriela Barros e Diogo Valsassina), de desempregados: ela, por ser uma psicóloga muçulmana, não tem "um cliente com medo que o rebente”; ele encontrou a vocação no stand-up aos 15 anos mas, agora, está "sem microfone nem palco”.
Apesar da história girar em torno de duas personagens (Luís e Marta Monstro), Gabriela Barros, que interpreta Maria e dá a voz à Professora Clamídia, refere que o "espectáculo é muito generoso pela forma como partilha o momento a solo de cada um”. A actriz — que, juntamente com alguns dos colegas, falou com o P3 antes de um espectáculo no Porto — sublinha o facto de toda a gente (e cada personagem) ter o seu tempo de palco, o que permite à plateia conhecer cada um dos intervenientes. Sim, porque personagens não faltam.
O elenco vai-se estendendo: de par em par, as portas das fachadas que compõem o cenário abrem-se. De lá sai ainda Joca (Rodrigo Saraiva) e Félix (Manuel Moreira), um gay dentro do armário que partilha casa com o amigo "desde os tempos do liceu". Marta Monstro (Ana Cloe) tem o sonho de abrir uma escola para “monstrinhos”, Paula Porca (Inês Aires Pereira) seduz os homens que lhe aparecem à frente, Trekkie (Rodrigo Saraiva) é o segundo monstro da vizinhança que tem tendências para o tarado e, por fim, ainda há espaço para um Pequeno Saul (Rui Maria Pêgo), que se tornou porteiro depois dos pais lhe roubarem a fortuna quando era criança — numa referência evidente a Saul Ricardo, cantor de música popular portuguesa.
"Acho que as pessoas se identificam", explica Rui Melo, "percebem que ‘na merda estamos juntos’, como diz a canção". "E mais vale aceitar, ir fazendo as nossas conquistas diárias, saindo do armário quando achamos que temos de sair, declararmo-nos a quem temos de nos declarar." Rui Maria Pêgo concorda: "Estes arquétipos funcionam". "Todos nós já fomos a pessoa cujo sonho falhou e de repente fomos obrigados a olhar para as coisas de outra forma”, diz. E isto “continua a ser completamente transversal”. “E depois os temas que são abordados, desde o racismo à homossexualidade, são temas que as pessoas nem sequer estão habituadas a ver tratados de uma forma tão cómica e leve."
"O politicamente correcto não está convidado"
A Avenida Q é “uma injecção de positivismo nas pessoas", continua Gabriela Barros. E, “tendo em conta a fase que acabámos de atravessar e que ainda atravessamos (noutros aspectos), é este o positivismo que faz com que as pessoas venham ver e tirar a prova dos nove". Inês Aires Pereira junta-se à conversa: “Nós recebemos muitas mensagens a explicar porque é que foi tão bom”. Rui Melo acrescenta, sem citar casos concretos, que recebeu várias mensagens de espectadores de 15 e 16 anos que, “depois de verem pela segunda vez a Avenida Q, tiveram a coragem de dizer aos pais que eram homossexuais”. E isto “é uma responsabilidade tremenda". "É muito comovente perceber que através de um espectáculo conseguimos provocar esse tipo de identificação nas pessoas e isso é o maior património, mais do que este histerismo à volta do espectáculo."
"Quando vamos ao teatro há uma convenção que passa por aceitar que aquilo é sempre verdade", explica Henrique Dias, "mas quando temos bonecos há ali uma outra que se acrescenta”. “É muito mais fácil identificarmo-nos com um boneco do que com um actor", finaliza. Mas serão as marionetas e o que elas representam — pessoas comuns com problemas corriqueiros — o segredo do sucesso?
Andreia Morais foi ver a peça ao Sá da Bandeira em Janeiro último, para acompanhar os pais e os tios. A jovem de 25 anos, que está à procura do primeiro emprego, reviu-se "em muitos dos pensamentos foram partilhados sobre esta questão". "É este carácter proximal que faz com que as pessoas se identifiquem e se envolvam ainda mais com o texto base", explica a blogger, por escrito, ao P3.
A portuense, que não ia ao teatro desde 2010, ficou a conhecer o musical através das redes sociais, onde acompanha o percurso de Rui Maria Pêgo e Inês Aires Pereira. “Achei o conceito bastante curioso", recorda. Mas “o melhor de tudo é que o politicamente correcto não está convidado". "No fundo, tudo nesta peça faz com que ela seja um verdadeiro sucesso (…) Apesar de ser um musical, há um excelente equilíbrio entre a parte cantada e a parte falada.” E quem não gosta de musicais? "As músicas têm de ter três coisas: graça, passar a mesma mensagem que o original e encaixar na métrica", completa Henrique Dias.
“Acho muita graça àquelas pessoas que dizem que não gostam de teatro musical", comenta Rui Melo, mas que nunca viram um exemplo. "E é muito engraçado, porque este espectáculo criou quase uma espécie de unanimidade, mesmo no meio teatral", prossegue. Henrique Dias concorda e acrescenta que o facto de em Portugal não existir uma tradição de teatro musical em nada ajudou, apesar da “escola do La Féria”. Seria no Porto, contudo, que a peça teria de passar pelo grande teste, refere Gabriela Barros. “Isto é a terra dos musicais, aqui há muito aficionado, mais do que em Lisboa, arriscaria dizer. Os meus amigos actores de musicais são todos do Porto e quando viemos para cá apareceram logo em bando." Ri-se: “Tivemos o carimbo da aprovação".
Millennials "não se revêem nas narrativas contadas"
Nem criadores nem actores estavam muito seguros quanto ao sucesso da versão portuguesa da Avenida Q. Gabriela Barros e Inês Aires Pereira mostraram-se cépticas em relação ao sucesso do espectáculo — apesar de o acharem “incrível” —, tal como Rui Maria Pêgo, que diz ter acreditado sempre com alguma desconfiança. “Uma das coisas que aconteceu foi termos tocado numa fatia que normalmente não vem ao teatro, os chamados millennials”, identifica. “Normalmente não se revêem nas narrativas contadas — ou revêem-se pontualmente mas não têm o hábito de vir ao teatro". "Acho que o tom – que é transversal – da peça tornou isto um sucesso. E a verdadeira vitória não foi tanto o trabalho de promoção: o passar a palavra é que tornou isto um sucesso." E que o diga Mafalda Bacalhau.
Veterinária de profissão, residente em Borba, vai (quase) de propósito assistir à peça no seu último fim-de-semana de palco, no Porto. Tudo porque uns amigos lhe deram a conhecer o fenómeno que é a Avenida Q. “Tenho as expectativas muito altas, os meus amigos dizem que 'não é um espectáculo, é o espectáculo' — e espero bem não sair defraudada.” Fã de programas como Os Marretas ou A Rua Sésamo, conta que anda sempre a par da agenda dos grandes centros culturais e, depois de não conseguir ter ido a Lisboa por motivos profissionais, teve que agendar a viagem ao Porto.
Conseguir cativar as pessoas foi o grande desafio, admite Rui Melo. “Como é que puxas uma pessoa, seja de que idade for (de 16 ou 70 anos, porque também as tivemos), para ver um teatro musical com marionetas que não é para crianças e tem linguagem ofensiva?” A comunicação, prossegue Henrique Dias, “foi muito agressiva" e a aposta na Paula Porca também: “Os cartazes foram muito agressivos e a campanha de promoção foi arriscadíssima". A produção optou por disponibilizar bilhetes para que os espectadores ficassem a conhecer os bastidores e os actores — o “meet and greet” — e isso gerou uma onda de fotografias partilhadas no Instagram com a Paula Porca e companhia, identificadas pela hashtag viral #avenidaq.
Por agora, a Avenida Q está no Teatro Sá da Bandeira até 25 de Fevereiro. Se o musical vai regressar às salas portuguesas, ninguém consegue garantir — apesar de todos os envolvidos o desejarem. Depois de mais de um ano em palco, Rui Melo continua a questionar-se: o que é que atraiu os jovens até à Avenida Q? Desemprego, sonhos, amor, Internet e pornografia chegam para justificar os mais de 61 mil bilhetes vendidos? Não podemos esquecer as músicas que ficam no ouvido: “Que merda que eu sou!" é só um exemplo.