A questão catalã chegou à ArcoMadrid e instalou a polémica

A organização da feira de arte espanhola pediu à histórica galeria Helga de Alvear para retirar do seu stand uma instalação de Santiago Serra sobre os “presos políticos” catalães, e a palavra censura não tardou a aparecer nas redes sociais. Horas mais tarde, a peça era vendida a um coleccionador espanhol.

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A obra de Santiago Sierra, quando ainda ocupava uma das paredes do stand da Helga de Alvear FERNANDO VILLAR/LUSA
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O stand da galeria após a retirada da instalação FERNANDO VILLAR/LUS

As televisões estavam todas em frente ao stand da Galeria Helga de Alvear e não era difícil adivinhar porquê. Mesmo antes da inauguração da ArcoMadrid, a feira de arte contemporânea que abriu esta quarta-feira as suas portas para os visitantes profissionais, a histórica galeria espanhola já tinha comprado a polémica do dia, talvez do ano. Na véspera, os media espanhóis tinham anunciado que o artista madrileno Santiago Sierra levaria àquele stand uma instalação, composta por 24 fotografias pixelizadas, sobre “presos políticos” em Espanha, entre as quais retratos de Oriol Junqueras e Jordi Sànchez, os líderes independentistas catalães acusados de rebelião e secessão.

Mas Presos políticos en la España Contemporánea, à venda por 80 mil euros, durou poucas horas nas paredes da galeria. Quando visitámos o stand, situado logo à entrada do Pavilhão 7, um lugar de grande visibilidade por onde não é impossível que os reis de Espanha passem esta quarta-feira, quando fizerem a sua aparição na ArcoMadrid, era já em frente a uma parede branca que as televisões faziam os seus enquadramentos. A organização da feira, o Ifema, que acolhe a ArcoMadrid e também organiza a ArcoLisboa, a sua congénere lisboeta da feira que terá lugar em Maio, pediu à galeria para retirar a obra deste artista que já representou Espanha na Bienal de Veneza e a quem foi atribuído o Prémio Nacional de Artes Plásticas. O presidente do Ifema, Clemente González Soler, não voltaria atrás na sua decisão – apesar dos pedidos que recebeu nesse sentido, vindos inclusive do município de Madrid, e da assumida discordância do director da feira, Carlos Urroz. Retirada às 9h45, ainda antes da entrada dos coleccionadores no recinto, a instalação tornava-se acto contínuo na sensação desta ArcoMadrid.

“Foi por causa do conflito político que podia causar e para evitar polémicas”, explicou ao PÚBLICO Alberto Gallardo, um dos directores de arte da galeria. A Helga de Alvear já esperava a polémica, acrescentou, mas não esperava o pedido para retirar a obra do stand, ainda que não se tenha oposto à decisão. Ao El País, o mesmo responsável acrescentou que nunca a galeria tinha tido de o fazer em qualquer participação anterior na feira.

O comunicado de imprensa da Ifema começa por dizer que o pedido feito pela organização foi aceite pela Galeria Helga de Alvear. “A instituição da feira, que tem o máximo de respeito pela liberdade de expressão, entende que a polémica que provocou nos meios de comunicação social a exibição destas peças está a prejudicar a visibilidade do conjunto de conteúdos que reúne a ArcoMadrid 2018.” É sua responsabilidade como organizadora, acrescenta o comunicado, "tentar afastar os discursos que desviam a atenção do conjunto da feira".

O director da feira, Carlos Urroz, não “partilha a decisão” da presidência do Ifema. Ao PÚBLICO, o também director da ArcoLisboa nota que é a primeira vez que vê uma obra de arte ser retirada da feira: “Acho que os artistas têm direito a expressar-se em qualquer sentido. Uns têm uma prática que vai num sentido mais político, como Santiago Sierra, outro [estão] mais ligados à sexualidade, etc. Há que respeitá-los.”

A Câmara Municipal de Madrid, uma das instituições de que depende o recinto da feira, pediu uma reunião de urgência da junta dos membros do Ifema para que a decisão fosse rectificada. Mas dois terços da junta, explica Urroz, apoiaram a decisão. Carlos Urroz acrescenta que o seu cargo está à disposição da direcção do Ifema, “como sempre tem estado”.

Na sua conta no Facebook, o artista, que em 2010 recusou o Prémio Nacional de Artes Plásticas invocando a necessidade de se manter independente para criar a sua arte, insurgiu-se contra a “censura”: “Para além da relativa surpresa e decepção com que recebemos a notícia, consideramos que esta decisão prejudica seriamente a imagem desta feira internacional e do próprio Estado espanhol”, escreve Santiago Sierra, que acrescenta que a decisão mostra falta de respeito para com uma galerista como Helga de Alvear. E justifica a existência da própria peça: “Acreditamos que actos deste tipo dão sentido e razão a uma peça como esta, que precisamente denunciava o clima de perseguição que estão a sofrer os trabalhadores culturais nos últimos tempos.”

Alberto Gallardo não quis explicar ao PÚBLICO por que razão a galeria acatou o pedido, remetendo para o texto de Santiago Sierra que enquadra esta obra, no qual o artista defende que “a presença de prisioneiros políticos dentro de prisões é a pedra de toque que descredibiliza qualquer governo que se tenta definir a si próprio como democrático", razão pela qual "nenhum governo reconhece a sua existência, disfarçando-a com descrições criminais como ataques à ordem pública, terrorismo, rebelião, etc.” Em Espanha, argumenta ainda, com a tradição franquista e o prolongamento dos conflitos nacionalistas após a transição para democracia, os critérios para definir um prisioneiro político “não são claros”.

Na obra, a frase justaposta ao retrato de Oriol Junqueras, líder da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e ex-vice de Carles Puigdemont na Generalitat, diz: “Depois dos acontecimentos em torno do referendo da Catalunha do dia 1 de Outubro de 2017, e depois da decisão de aplicar o artigo 155 da Constituição espanhola, a Audiência Nacional condenou a prisão incondicional e sem fiança o vice-presidente catalão juntamente com oito ex-conselheiros da Generalitat. Só um deles pôde evitar a condenação com uma fiança de 50 mil euros. Ingressaram nas prisões de Estremera e Alcalá Meco.”

Destes, só Junqueras e um ex-conselheiro, Joaquim Forn, continuam presos. Jordi Sànchez e Jordi Cuixart, a quem a obra igualmente alude, também ainda não foram libertados.

Censura?

Helga de Alvear é uma das fundadores da ArcoMadrid e uma das galeristas mais conhecidas de Espanha, representando artistas portugueses como Helena Almeida ou José Pedro Croft. Parte da sua colecção está neste momento em exibição em Madrid no Centro de Arte de Alcobenas, sendo também possível vê-la no Fórum Eugénio de Almeida, em Évora.

Ao jornal ABC, a galerista desvalorizou a polémica, dizendo que na sua opinião não se pode chamar censura à retirada da obra: “Eu não sou tão importante, nem tão pouco a obra, para se ter organizado esta confusão. Porém, já estou habituada: Santiago Sierra mete-me sempre em confusões.” E acrescenta que não percebe por que é que as coisas tomaram estas proporções: “Não entendo por que levaram tudo tão a sério. Eles próprios chamaram-se ‘presos políticos’. Não se vê a cara, não se vêem os nomes, não se vê nada.”

Na Bienal de Veneza, em 2003, Santiago Sierra apresentou uma instalação sobre as fronteiras, que também causou polémica, ao exigir que os visitantes apresentassem o passaporte espanhol para poderem entrar no Pavilhão de Espanha. Dois seguranças encarregavam-se de pôr em prática as ordens do artista.

Contactada novamente pelo PÚBLICO ao final da tarde, a Galeria Helga de Alvear confirmou que a nova obra de Santiago Sierra já tinha sido vendida – a um comprador espanhol. No seu stand na Arco, onde entretanto o vazio na parede já tinha sido preenchido com várias obras do alemão Thomas Ruff, ainda era possível comprar o jornal que acompanhava Presos políticos en la España Contemporánea por dez euros.

O PÚBLICO viajou a convite da ArcoMadrid

Notícia corrigida a 22 de Fevereiro: O nome correcto do presidente do Ifema é Clemente González Soler e não Eduardo López-Puertas, como escrevemos. Este último é director do Ifema.

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