Kasbahs, a poesia da Terra
A leitora Manuela Santos partilha a sua experiência em Marrocos.
Marrocos e as suas incríveis kasbahs há muito tempo que alimentavam os nossos projectos de viagem. Rumámos no seu encalço, até ao Sul do país, animados com a perspectiva de, finalmente, podermos admirar essas enigmáticas casas acasteladas, construídas em adobe, da cor da terra, como se esta se tivesse erguido num devaneio poético. Que segredos encerram? Certamente memórias das emoções, dos dramas familiares, das vidas de sobrevivência numa terra onde o sol é implacável.
Partindo de Marraquexe, onde alugámos carro depois de um regateio apaixonado, aventurámo-nos pela estrada que nos levaria por Ouarzazate até Zagora, passando depois a Tinfou e Merzouga, bem próximas da fronteira argelina e já às portas do deserto, para voltarmos novamente a Ouarzazate com Erfoud pelo caminho. Um percurso quase circular, onde as kasbahs nos vão surpreendendo ao virar a curva da estrada ou então sobressaindo por entre o casario.
Depois da travessia lenta das montanhas do Atlas, o nosso pasmo inicia-se com o admirável Aït Ben Haddou. Esta ksar, composta por várias kasbahs circundadas por muralha, empoleiradas numa colina com as palmeiras e o rio a seus pés, é simplesmente deslumbrante. Começámos aqui a aprender um pouco sobre a vida dos antigos berberes. Que construíram estas casas tipo fortalezas para se abrigarem não só de um clima demasiado agreste, como também para se defenderem dos nómadas do deserto que, no final das colheitas, invadiam os oásis onde, quase sempre, ficam as kasbahs.
É estrada fora que vamos apreciando a simplicidade da vida actual do povo berbere. Nos povoados mais ou menos pequenos, a terra e o pó tudo invadem. Não há ruas empedradas. As casas térreas são cor de terra e as janelas escassas. É preciso virar as costas ao sol, criar ambientes escuros e mais frescos no seu interior. As aldeias misturam-se com a aridez e monotonia da paisagem, parece não ser possível a vida ali, mas as mulheres de trajes muito coloridos e rostos expressivos ou a fila de crianças muito pequenas, todas alinhadinhas nas suas túnicas brancas, caminhando em direcção a uma pequena madrassa, são belíssimos sinais da adaptação do homem ao meio ambiente. A mesquita, caiada ou pintada, marca sempre presença em qualquer lugar, por mais pequeno que seja.
Ao encontro das emblemáticas kasbahs, percorrendo regiões extensas e áridas pela proximidade do deserto e onde a ilusão da miragem acontece, fomos surpreendidos com a beleza dos oásis que ultrapassaram, largamente, a ideia que tínhamos desta realidade. É assombrosa a dimensão do oásis do vale do rio Drâa. Subimos a uma pequena colina à entrada de Agdz para desfrutar de uma paisagem de beleza sem igual. De um lado, a cidade rosada quase da cor dos penhascos envolventes; do outro, um extenso mar verde embutido no ocre num contraste a perder de vista. O imenso palmeiral que ladeia o rio é uma bênção para a sobrevivência das populações. Nele pratica-se uma agricultura intensiva: produtos hortícolas junto ao solo e, emergindo por entre estes, crescem as árvores de fruto, todos protegidos do sol pelas palmeiras de tâmaras que constituem grande fonte de riqueza.
Mas se há oásis, também há dunas por perto e aí fomos nós até Merzouga. Ficámos alojados no Auberge Café du Sud, implantado nas areias do deserto que se estendem até ali. Um saboroso chá de menta fez-nos as boas-vindas bem ao jeito marroquino. Esperavam-nos as dunas de Erg Chebbi, assim como o guia, um tuaregue, agora como marinheiro em terra fazendo trabalhos para o turista, que nos levou a mergulhar num mar de areia que não é senão um grão nesse imenso deserto do Sara.
Há sempre, em nós, uma ideia romântica sobre as dunas ao pôr do sol que as tinge de uma tonalidade acobreada, excelente para uma fotografia. Mas o mais impressionante para mim, nesta pequena experiência, foi o silêncio absoluto que pairava sobre as enormes massas de areia, de curvas elegantemente suaves, produzidas pelo vento que, na hora deste encontro mágico, as abandonou completamente. Os dromedários, deitados nas areias e aguardando a sua carga para nos levar de volta, pareciam cúmplices, respeitando o momento de acalmia, de paz, de reconciliação.
As dunas ficaram para trás, mas não a aridez da paisagem nesta rota das kasbahs. Sempre as fomos avistando aqui e acolá como marcos da cultura de um povo um pouco reservado ao primeiro contacto e nem sempre falando bem o francês, mas, no entanto, afável. Foi com a kasbah de Amerhidil, em Skoura, de grandes dimensões e interesse cultural que encerrámos uma rota de encanto, de admiração pelas obras que o homem sempre consegue construir mesmo em condições bastante adversas.
Manuela Santos
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