Cuidado, Isabelle Huppert atira cinzeiros
Na sua sexta colaboração com o realizador Benoît Jacquot, a actriz francesa é o pecado original do desejo que destrói a vida de um impostor que se faz passar por dramaturgo.
A primeira vez que Bertrand se cruza com Eva, leva logo com um cinzeiro na tola que é para não se armar em engraçado. Podia ser uma cena de uma comédia screwball clássica, mas o que Benoît Jacquot filmou nos 15 minutos anteriores não tem nada de engraçado, e como Eva é Isabelle Huppert, também não esperamos que o que se siga seja engraçado. Antes pelo contrário: Eva, em estreia mundial na competição de Berlim, é um film noir “à francesa”, adaptando um romance de James Hadley Chase que já dera origem em 1962 a um filme de Joseph Losey com Jeanne Moreau no papel-título.
Se as contas não estão mal feitas, este é o sexto episódio de uma colaboração entre Jacquot e Huppert iniciada em 1981 com As Asas da Pomba e que teve o seu mais recente momento em Villa Amalia (2009). “A Isabelle é a minha irmã de cinema,” dirá Jacquot num encontro com a imprensa internacional no luxuoso hotel Adlon de Berlim. Minutos mais tarde, Huppert repetirá as palavras – “o Benoît é o meu irmão de cinema, absolutamente”; e um dos poucos a quem dirá que sim a tudo sem hesitações. Não é por essa ligação entre ambos que Eva conseguirá autonomizar-se do papel que valeu à actriz a nomeação para o Óscar em 2017, Ela (em português, aliás, basta uma letra para separar os dois filmes). Este tem mesmo muito em comum com o filme de Paul Verhoeven, no modo como a actriz joga em simultâneo com a humanidade e a perversidade de uma mulher zelosa da sua privacidade.
Esta Eva, contudo, não esconde nenhum passado, antes o seu presente como call-girl de luxo em Annecy que compartimenta da sua vida privada com absoluta naturalidade. E é isso que atrai Huppert para estas personagens-limite, como dirá aos jornalistas: “por mais perversas ou estranhas ou desagradáveis que possam ser, o que me interessa é descobrir a sua humanidade, trazer ao de cima as suas emoções, aquilo que as torna iguais a nós. Agora, é verdade que eu não estou sempre à procura de personagens assim, elas é que vêm ter comigo... ”
Eva, então, dá com o cinzeiro na tola de Bertrand. Este, interpretado por Gaspard Ulliel, não é nenhum santinho – é um call-boy parisiense que começa o filme a roubar uma peça de teatro a um cliente que morreu de causas naturais à sua frente, e que se torna num dramaturgo de sucesso à conta da peça que apresentou como se fosse sua. Quando encontra Eva, é um encontro de fachadas, de máscaras, de imposturas – com a diferença de que, por trás da carapaça de prostituta de luxo, há uma mulher que sabe quem é e o que quer, enquanto por trás da fachada de dramaturgo em crise de inspiração há um homem que não sabe quem é e que canibaliza os outros para se inventar. E que se deixa seduzir pelo pecado original desta mulher que quer conquistar nos seus termos – tanto como desafio pessoal como para possível material da peça que vai ter de escrever.
Eva podia – lá vamos nós outra vez – ser uma comédia de enganos sobre gente que finge ser quem não é em nome do amor, mas não é bem isso que Jacquot procura; este é muito mais um duelo de predadores onde Ulliel/Bertrand, claramente a jogar acima das suas capacidades, procura apanhar Huppert/Eva em falso, jogo que está perdido à partida porque (como alguém às tantas diz) “uma mulher dessas não se apaixona”. E Huppert é espantosa, como sempre, acima do filme, como sempre – já começa a ser cansativo puxar dos adjectivos sempre que a vemos, mas o modo aparentemente casual como ela seduz ou ameaça, com uma enorme displicência que não se transforma forçosamente em desprezo, volta a explicar porque é que aqui está a maior actriz do mundo hoje em dia. Jacquot, na sua conversa com os jornalistas, dirá que Huppert “é com Catherine Deneuve a única actriz viva cuja obra, cuja escolha de projectos, se constitui como uma obra literalmente de autor, ao mesmo nível de um escritor, de um artista, de um cineasta. Como ela só vejo Deneuve e, noutros tempos, Jeanne Moreau, com quem tenho muita pena de nunca ter filmado.”
Paradoxalmente, o Eva original de Losey era com Moreau. Mas Huppert dirá ter feito questão de não ver o original – “não senti necessidade, mas não tenho uma razão para isso, talvez não tenha querido que a interpretação dela me condicionasse de algum modo”, tanto como Jacquot dirá não o ter revisto desde que o viu há muitos anos, preferindo trabalhar sobre o romance de Hadley Chase. Paradoxo duplo: o filme pertence à Huppert (nem podia ser de outro modo) mas foi para Gaspard Ulliel que Jacquot o pensou, vendo no actor que foi Yves Saint-Laurent para Bertrand Bonello em 2014 alguém com a mesma presença física e ambígua de Alain Delon na adaptação de Patricia Highsmith À Luz do Sol (1960). Tal como Tom Ripley, Bertrand é um fura-vidas em constante reinvenção de si próprio, mas que encontra em Eva o seu desafio mais difícil. Porque Eva, tal como a sua actriz, é uma força da natureza, que carbura a instinto. “Nunca mais me procures”, diz ela a dada altura daquela maneira glacial de que só Isabelle Huppert é capaz. E nós arrepiamo-nos, porque sabemos do que ela é capaz. Metam-se com ela e levam com um cinzeiro na tola.