José Cid: “Canto o que a minha voz dá, um dom que não devo a Deus”

Eis Capitão Cid e o Clube dos Corações Solitários, os discos que já gravou e o que está a terminar, passando pelo sample de Jay-Z que lhe “destruiu a música” e a assumida “toxicodependência de café”

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Nuno Ferreira Santos

“Eu conheço-o de algum lado”, abordou-o a senhora de meia-idade que se cruzou com ele no rés-do-chão do edifício, no Porto, onde era esperado para mais uma entrevista. Talvez a primeira, dois dias depois de ter completado 76 anos. “Claro que conhece, minha senhora”, respondeu sorridente. “Sou o Marco Paulo”, rematou. “Ah pois é! Bem me queria parecer”, constatou a transeunte, batendo com as pontas dos dedos na testa, admitindo ela própria a ignorância de não ter reconhecido o artista à primeira.

Não façamos a mesma partida ao leitor. Não. Não se tratava de Marco Paulo. O homem que se assumiu como sendo o cantor romântico era José Cid e, naquele momento, seguia meia viagem no elevador rumo ao terceiro piso do prédio. Também ainda antes, no passeio da Rua Júlio Dinis, várias pessoas se tinham cutucado ao vê-lo passar. “Vai ali o Zé Cid. Vou pedir-lhe um autógrafo.” As vozes sussurradas sucediam-se, com alguma estranheza, por não ser habitual ver um artista assim, deslocando-se pelo seu próprio pé, sozinho, sem assessores nem agentes, familiares ou amigos. Era apenas um homem de calças e casaco de ganga, t-shirt preta e óculos de sol. Parecia o Zé Cid. E não só parecia, como era. A única cidadã com coragem para abordá-lo seguiu para casa com a certeza absoluta de ter conhecido o Marco Paulo.

Foi esse José Cid que se apresentou pontualmente a esta entrevista na Rádio Nova, prontamente avisando já não ser dotado da voz que lhe conhecíamos. “Eu, nos anos 70 e 80, cantava ao som dos Yes, que é uma coisa impossível de cantar por alguém. É vocalmente impossível e eu cantava. Hoje canto aquilo que posso, mas ainda canto Led Zeppelin.” E, a comprová-lo, afastou-se do microfone para atirar um sonoro e rouco “You need coolin (Whole lotta love)...” sem problemas. “Estás a ver ideia?”

“Eu canto aquilo que a minha voz me dá e esse é um dom que não devo a Deus. Devo-o a mim, por não fumar, por não beber coisas geladas (…) Tenho uma vida muito saudável que me projecta a voz dez anos mais do que aquilo que eu deveria já ter tido.” Há, porém, um vício que o “Menino Prodígio" não esconde: “Devo dizer que sou toxicodependente, devo assumir, mas é de café”. E, nesse mea culpa desavergonhado de quem não tem peso na consciência, mexeu o açúcar do café que bebeu de um só trago, sem tirar os olhos do disco que o tinha levado até àquela entrevista — Clube dos Corações Solitários — e quase sem desviar a boca do microfone que, naquele momento, contava o episódio vivido na véspera, o da gravação de um videoclipe. “No cimo da serra do Buçaco, com um frio medonho” só suportável com o mesmo capote alentejano que nem em casa despe. “É uma peça de roupa genuinamente portuguesa, tão bonita, tão quente, tão confortável (…) A minha casa é gelada. Então, olha, ponho o capote [risos]. Eu e a Gabriela.”

“Não sou um bom pianista, mas sei tocar por mim”

A conversa entre dois microfones prosseguia há 17 minutos quando José Cid viajou até meados do século passado, em Coimbra, à altura em que era o jovem vocalista do Grupo de Jazz Orfeon. Praticamente não manejava instrumentos musicais porque a banda tinha “um pianista muito bom”. Mas seria naqueles tempos que viria a herdar os conhecimentos dos teclados.

“Para te dar uma ideia do que toco no acordeão: uns fadinhos, umas valsinhas francesas, mas não sou nenhum artista. Agora, harmonias isso eu aprendi porque o pianista do Grupo de Jazz Orfeon me ensinou e quando ele não me ensinava eu copiava-o. Deitava o olho e via onde ele punha a mão, e zás, ia para casa e copiava”, ri-se. “Consigo defender-me bem. Não sou um super acordionista, como não sou sequer um bom pianista, mas sei tocar por mim.”

E José Albano Cid Ferreira Tavares voltou ao acordeão neste álbum, de tributo aos Beatles e aos 50 anos do icónico Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. A homenagem não se faz com versões, mas com a própria identidade do artista nascido na Chamusca, a começar pelo nome do trabalho que, em vez de um sargento, tem o próprio Capitão Cid e, só depois, traduz à letra o Clube dos Corações Solitários. Na capa, em vez de Fred Astaire, May West, Marlon Brando, Marlene Dietrich, Shirley Temple, Bob Dylan, Oscar Wilde ou Karl Marx, há António Sala, Hermínia Silva, António Costa, Natália Correia, Júlio Isidro, Marcelo Rebelo de Sousa, Camões e José Cid com trajes de confrade dos Enófilos do Dão.

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Nas faixas do disco não há Lucy in the sky with diamonds do Sgt. Pepper, mas no céu do Capitão Cid há Andorinhas da Paz de um poema da chilena Gabriela Mistral, prémio Nobel da Literatura, “sobre as freiras que curavam as feridas dos soldados desconhecidos das guerras civis com iodo”. Também não há uma versão de With a little help from my friends, mas há a mãozinha de amigos, de um em especial com quem se gaba de partilhar “uma amizade canina”. “O Tozé Brito faz dueto comigo na música João Gilberto e Astor Piazzolla. Chama-me mano mais velho, mas temos a mesma idade. Ele está comemorar os 50 anos do Fugir de Casa, mas o pai dele autorizou-me a levá-lo para Lisboa. Ele fugiu de casa há 50 anos e eu há uns 60.”

Depois, nesta homenagem em vinil ou em CD, também não há 14 músicas como no álbum dos Beatles. Com Cid, são 16. E há uma nova versão do tema Ode to the Beatles do Quarteto 1111. “Por acaso não gravei a do Jay-Z. Tu já ouviste? Ele meteu um sample do 1111, meu e do Tozé [Brito], num tema que se chama Marcy Me, que é a faixa 12… O gajo destruiu-me a música, pá. Desculpa, a minha música e do Tozé é tão bonita, é um poema tão bom do Gil Vicente, um génio como o Shakespeare. Aquilo parece um vírus que está lá a rodar.”

“Eu acredito na reencarnação”

Com 76 anos acabados de fazer, a 4 de Fevereiro, José Cid sente que já não é o homem que contesta, mas que constata. E garante que ninguém pode chamar-lhe “mentiroso, arrogante, agressivo, desbocado”. Parece não ser esse o adjectivo. “Quantos génios eram insuportáveis? Se eu te dissesse que o Miguel Torga era uma pessoa insuportável? Ou que o Federico García Lorca era muito complicado? Se eu te dissesse que a Elis Regina era insuportável? Eu não sou insuportável porque sou divertido. Gosto de me rir, de anarquizar. Não gosto nada de entrar de trombas e sair de trombas. Acabo por dizer aquilo que as outras pessoas pensam e não têm coragem de dizer. É uma coisa que me permito fazer.”

O mesmo não lhe permitiu o hipismo, hobby que teve de preterir para poder continuar a dar espectáculos. “Já não tenho condições para montar. A partir dos 72 tive de escolher entre fazer concertos e entrar em competições. Já não era compatível. A minha adrenalina é o café, confesso, e entro em palco cheio de energia. Ainda faço isso.”

Energia que ainda canaliza para novas sonoridades que persegue para mais discos, sendo certo estar a trabalhar no próximo, “bem diferente deste”. “Não se pode ser coerente em música. Tens de fazer aquilo que a inspiração te traz. E este meu próximo álbum será um desmanchar de tudo aquilo que fiz de rockeiro no Menino Prodígio, tudo o que fiz de baladas e canções nestes Corações Solitários.” Pelo teor do que se segue percebe-se que o tema central, mais do que a morte, será o que espera vir depois dela. “É uma espécie de efeméride da minha vida, porque acredito na reencarnação, e também é um álibi para a nossa morte inexorável física e nós temos direito de acreditar que um dia vamos voltar, como dizia Sophia de Mello Breyner, transformados numa ave, numa nuvem, numa gota de água, numa flor, num animal. Havemos de voltar e ser livres como um animal.”

Voltar é agora o verbo do cantor. Ao Porto voltará em Junho, porque acaba de fechar com a Câmara Municipal o concerto de São João. “Serei eu e a Big Band. Vamos fazer uma festa!” E depois? “Volto, prometo, quanto mais não seja reencarnado”. Em quê? “Já agora, gostava de ser um cavalo.”

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