Joana Gama, os 4’33’’ de John Cage no Panteão e tudo o mais que nos dará o Rescaldo

Joana Gama, Joana Guerra e Maria da Rocha agitam o primeiro fim-de-semana do Festival Rescaldo, a decorrer em Lisboa até 24 de Fevereiro. Três mulheres que juntam a formação clássica à experimentação sonora.

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Neste Rescaldo, Joana Gama viajará entre Erik Satie, John Cage e Morton Feldman ESTELLE VALENTE

Joana Gama ainda está a digerir a “torrente de emoções e de sensações” por que passou a 14 de Janeiro, quando interpretou ao longo de 14 horas as Vexations de Erik Satie. Já o tinha feito antes, em 2016, no festival Jardins Efémeros, em Viseu, mas a experiência no ciclo Pianomania! da Fundação Gulbenkian revelar-se-ia de uma intensidade muito particular. “Envolveu muito sofrimento, porque estive com dores durante as últimas horas”, recorda ao PÚBLICO. “No entanto, como experiência total foi muito boa. Sou uma pessoa muito activa no dia-a-dia, mas não me choca nada estar 14 horas sentada a tocar a mesma música. Saber que houve gente que ficou lá muitas horas e quis passar aquele tempo comigo, com aquela música e aquela experiência, mais as pessoas que estavam a assistir à distância em streaming e que ficaram até ao fim, tudo isso foi muito marcante. Para mim foi uma experiência emocional e musical muito forte, e também por ser aquela peça específica de Satie, compositor a quem tenho dedicado muito tempo.”

Foi em Janeiro de 2016 que Joana Gama se lançou num primeiro gesto de enorme ambição e de ligação estreita à obra de Satie, ao desenhar, por ocasião do 150.º aniversário do nascimento do compositor francês, o programa Satie.150, que correu o país com apresentações em 12 localidades que pontuaram todo o ano. Em Novembro último, lançou um álbum com o recital que se foi construindo em torno desse conceito e agora, nas suas duas apresentações no Festival Rescaldo, que decorre entre 16 e 24 de Fevereiro, Satie volta a intrometer-se no seu mundo.

Primeiro, no sábado à noite, a pianista integra o trio Harmonies, em que, ao lado de Luís Fernandes (electrónica) e Ricardo Jacinto (violoncelo e electrónica), parte de fragmentos ou várias deixas do universo do compositor para criar música original. “Não tenho um espírito de missão relativo ao Satie e há outros projectos e ideias para fazer”, esclarece, “mas é apaixonante que, a partir do momento em que comecei a descobri-lo, através da sua música fui conseguindo estabelecer ligações e chegar a vários sítios". E explica: "É o caso do Harmonies: nunca me tinha passado pela cabeça fazer um projecto autoral a partir do Satie, mas foi isso que aconteceu.” O trio apresenta-se na Culturgest – casa-mãe do Rescaldo pela última vez, já que o novo director artístico, Mark Deputter, anunciou a intenção de não voltar a acolher o evento.

Depois, no domingo, pelas 16h30, será a vez de Joana Gama se apresentar a solo no Panteão Nacional com um reportório pensado especialmente para as características acústicas do espaço. E Satie volta a acompanhá-la. No caso, as quatro peças que compõem Ogives “faziam muito sentido naquele contexto porque pedem, de facto, reverberação, algo impossível de obter numa sala de concertos”. Algo a que não será alheia a inspiração que o compositor terá encontrado nas janelas da Catedral de Notre-Dame, em Paris. A Satie, Joana Gama junta outros dois compositores da sua assumida preferência, Morton Feldman e John Cage, de novo escolhidos pela natureza das peças em questão: Palais de Mari (Feldman) e 4’33’’ (Cage). A emblemática obra de Cage há muito que perseguia a pianista e será no Panteão a sua primeira interpretação de uma partitura que não inclui qualquer nota musical. “É uma criação que vem de um período em que o John Cage estava a experimentar esvaziar a obra da personalidade do compositor”, contextualiza a pianista. Se com Satie quis romper a ideia de que era “apenas” o autor das populares Gymnopédies, desta vez quer contrariar uma obra “tão ridicularizada e negligenciada no meio musical – ao contrário da reverência que lhe é consagrada no mundo das artes plásticas e performativas” –, para que o público possa formar a sua opinião. E assim, em apenas dois meses, Joana Gama arrisca-se a criar dois dos mais extraordinários acontecimentos musicais de 2018.

Melancolia e beterrabas

Num programa que inclui ainda Diana Combo, Rafael Toral e Pedro Centeno (16 de Fevereiro), Vítor Rua & the Metaphysical Angels (23), Citizen Kane & Hobo (23), MMMOOONNNOOO e Quim Albergaria (23), EITR e Gabriel Ferrandini (24), Farwarmth (24) e 10.000 Russos com Jonathan Uliel Saldanha (24), é impossível não estabelecer pontes entre Joana Gama, Maria da Rocha (16) e Joana Guerra (17). Partilhando todas um passado de formação clássica, cada uma foi descobrindo diferentes formas de se relacionar com a música improvisada e exploratória.

Joana Guerra – que no âmbito do Rescaldo apresenta um concerto centrado no seu álbum Cavalos Vapor (2016) – abandonou os estudos académicos numa altura em que sentiu que “se continuasse na escola iria deixar de tocar violoncelo”. Foi “uma decisão muito ponderada”, impulsionada pela vontade de partir em busca de novas sonoridades. O que significou uma aproximação ao mundo da música improvisada, do free jazz e da música experimental, envolvendo-se em projectos com músicos como Ricardo Jacinto, Tiago Sousa ou Gil Dionísio, ao mesmo tempo que, aos poucos, ia desenvolvendo a linguagem que escutamos no seu trajecto a solo – alicerçado em canções para voz e violoncelo, mas em que as sonoridades do instrumento são exploradas com recurso a pedais de efeitos e electrónica.

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Joana Guerra percebeu que tinha de abandonar a formação musical académica para não se cansar do violoncelo NUNO MARTINS

A esse universo de canções fundadas num “certo obscurantismo, uma certa melancolia ou nostalgia”, segundo a própria, o concerto no Rescaldo juntará algumas peças compostas entretanto, destinadas sobretudo a acompanhar espectáculos de dança e de teatro. Todos os temas serão ainda entrelaçados por micronarrativas que surgirão nos intervalos entre canções, pequenos apontamentos que servem de introdução e estabelecem ligações, com o propósito de ajudar a esboçar “uma narrativa maior”, numa lógica de músicas dentro da música que lhe lembra a obra de Italo Calvino (os livros dentro do livro que é Se numa Noite de Inverno Um Viajante): “Imagino o concerto como um mergulho que, só no final, permitirá vir à tona.”

As narrativas imiscuem-se também no mundo musical da violinista e violetista Maria da Rocha. Beetroot and Other Stories, álbum a solo com edição da Shhpuma lançado esta sexta-feira, é atravessado por histórias como um conto de terror para crianças em que um peixe se perde no mar e acaba por se transformar numa serpente-pássaro ou a tragédia amorosa de mulher que ao apaixonar-se por alguém, querendo oferecer-lhe o melhor que tem para dar, acaba por envenenar o objecto amado. Maria da Rocha, que assume uma natureza “bastante conceptual” na sua obra, gosta que “o conceito, a ideia ou a semente” aplicados às suas composições possa, depois, estimular respostas de artistas visuais, fotógrafos, libretistas ou outros músicos.

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Maria Rocha permite que o ruído e os sons do ambiente interfiram na sua música PEDRO SADIO

Há também uma inspiração forte proveniente do ruído e da interacção do instrumento com sons do ambiente ou sintetizadores na sua música. É daí que vem grande parte da matéria trabalhada em Beetroot, privilegiando uma resposta intuitiva que a música improvisada lhe forneceu, por oposição à racionalidade do dodecafonismo e do serialismo que estudou e que continuar a executar como intérprete. “Custou-me bastante a aceitar isso”, admite, relativamente à validação de um método criativo assente sobretudo na improvisação. Mas após aceitar essa largueza de conceitos, percebeu que, mesmo se influenciada por obras de Ligeti, Feldman ou Phil Niblock, até nas características de uma beterraba ("beetroot") pode encontrar matéria para deixar que a música se expanda.

E esse, na verdade, quase pode ser o mote do Rescaldo: um festival para música em movimento de contínua expansão.

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