Páginas a serem viradas. Umas com calma, outras como quem já não pode ver mais aquilo à frente. Marcadores. Suspiros. Muitos. Não sei com que cara fico quando fecho os olhos na biblioteca só para ouvir os meus amigos e colegas existirem. Mas suponho que não se note muito que é para isso que os fecho, deve parecer que estou a decorar critérios de internamento ou assim. Pelo menos, era o que devia estar a fazer... Já mencionei que tenho oral de Pediatria daqui a quatro horas? Típico.
Dou por mim, portanto, a enveredar pelos caminhos desviantes do costume, ainda que desta vez com alguns riscos acrescidos. Começar a deambular mentalmente pelas idiossincrasias das relações humanas perto do Dia dos Namorados é caminho directo para toda a gente achar que fritei a pipoca de vez. Apesar disso, continuo. Se a esta altura ainda não estão habituados, deveriam parar de ler imediatamente.
O caso é que hoje voltei a relembrar o quanto a generalidade das criaturas humanas lida mal com a solidão paradoxal que abraça a época que nos calhou viver como uma nuvem estranha. Por um lado, usufruímos de mais oportunidades para estar ligados do que nunca. Corrijo-me. Mais do que uma oportunidade, esta ligação é uma imposição e um imperativo social. Somos praticamente coagidos à pertença ao tecido virtual da humanidade, mais que não seja por motivos profissionais. Eu própria sobrevivo corajosamente à intempérie verborreica que se abalança sobre mim cada vez que pronuncio as palavras “não tenho Instagram”.
(Tornei-me tão proficiente em antecipar o ultraje dos meus interlocutores que passei a conseguir sincronizar perfeitamente o momento da dilatação pupilar que antecede o chorrilho de argumentos com o momento em que o meu encéfalo se teletransporta alegremente e com toda a naturalidade para o país dos unicórnios.)
Contudo, acabo por recair no estranho pressentimento de que a generalidade das pessoas se sente mais sozinha do que nunca. Acabei por selar esta intuição como certeza na altura do Natal. Algures entre a avalanche de mensagens maravilhosas que enviamos e recebemos nessas alturas, recebi uma notícia que enquanto parecia estar a fascinar toda a gente acabou por me aterrorizar um bocado. Entre as várias campanhas de marketing que se realizam, com toda a legitimidade, durante essa época, uma conhecida empresa de telecomunicações lançou uma acção baseada num número de telefone para o qual qualquer pessoa poderia ligar gratuitamente para ouvir uma das várias mensagens automáticas sobre a magia do Natal, gravadas para o efeito.
Devo ressalvar, pelos motivos óbvios, que não tenho nenhuma ligação com esta ou qualquer outra empresa do género e que, de uma maneira objectiva, considerei tratar-se de uma campanha extremamente bem pensada e conseguida, que gostei de ver nos cinemas e na televisão. Mas não pude deixar de pensar na ironia inerente ao facto de sentirmos necessidade de marcar um número para ouvir uma máquina recordar-nos, no fundo, de todos os sentimentos a que o Natal está associado, considerações religiosas à parte. Precisamos mesmo de ser relembrados, por uma voz pré-gravada, de que devemos investir o nosso tempo nas pessoas que nos são queridas? Que as celebrações, quaisquer que sejam, só fazem sentido porque existem amigos e família com os quais celebrar? Não deveríamos saber tudo isto antecipadamente e investirmos a bateria do telemóvel em ligar a essas pessoas em alternativa?
Mas os sinais da nossa solidão não se extinguem aqui. Há já pelo menos dois anos que começaram a surgir empresas que facilitam os serviços de “abraçadores profissionais”. Não, não estamos a falar de sexo. Dos Estados Unidos à Ásia existem aplicações que permitem contratar os serviços de um “profissional” (fiquei extremamente curiosa quanto às qualificações destes indivíduos) para nos abraçar, por um valor tabelado à hora. Um dado que me sugere que, aparentemente, há quem possa ter incontáveis amizades nas redes sociais e ninguém a quem telefonar. Pelo menos, alguém com sinais vitais.
Para culminar a nossa consagração no âmbito do ridículo, correu o mundo o anúncio da criação do Ministério da Solidão no Reino Unido, idealizado especialmente para promover uma acção política concertada no combate a este problema, depois da publicação de um relatório que estima o número de britânicos solitários em cerca de nove milhões. Gostava muito de saber que percentagem destas pessoas tem centenas de contactos disponíveis à distância de um clique, através das múltiplas plataformas em que certamente estão inseridos.
Mas podemos mesmo discutir a epidemia da solidão enquanto começam a surgir debates sobre a ansiedade por FOMO (Fear of Missing Out), o desejo compulsivo de estar permanentemente ligado às redes sociais por medo de, literalmente, deixar escapar alguns dos conteúdos que deixamos de ver por estarmos offline?
Como já deve ser bastante evidente, a forma como usamos as redes sociais actualmente está longe dos objectivos subjacentes à sua criação. De uma forma oximórica, passamos mais tempo a observar a vida (ou a representação da mesma) dos outros do que a participar dela. Ligamo-nos individualmente a centenas de imagens mas a poucas das pessoas por trás delas, que por sua vez se ligam apenas à imagem que projectamos.
Os meios à nossa disposição não são, de todo, a origem do problema. Tenho alguma esperança de que possam ser parte da solução. Caso contrário, e se a oral de daqui a bocado correr mesmo mal, considerarei as minhas opções de carreira enquanto abraçadora profissional. Afinal de contas, é um hobby no qual já tenho anos e anos de boas experiências.