O PSD de Salvador Malheiro
Rui Rio arrisca-se a mandar para a nuvem a sua promessa de dar “um banho de ética” na política ao deixar que Salvador Malheiro, o presidente da Câmara de Ovar, se transforme numa figura algures entre Rasputine e o Cardeal Richelieu da sua liderança do PSD.
Em 2001, logo depois de ser eleito presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio meteu na gaveta a sua promessa de lutar contra a “promiscuidade entre a política e o futebol” ao apoiar Valentim Loureiro contra Luís Filipe Menezes na corrida pela Junta Metropolitana do Porto. Em 2018, Rui Rio arrisca-se a mandar para a nuvem a sua promessa de dar “um banho de ética” na política ao deixar que Salvador Malheiro, o presidente da Câmara de Ovar, se transforme numa figura algures entre Rasputine e o Cardeal Richelieu da sua liderança do PSD. Entre um e outro momento, os riscos políticos das suas escolhas são muito diferentes – em 2001 estava eleito e agora Rui Rio tem pela frente a dura tarefa de defrontar António Costa e o PS nas próximas eleições legislativas. Mas há um traço em comum que paira no ar como uma ameaça: a credibilidade de um líder que faz gala em afirmar-se como credor de um leque de princípios e de valores supostamente acima das exigências do comum dos mortais fica inevitavelmente em causa.
Como Valentim Loureiro há uma década e meia, Salvador Malheiro salva-se no escrutínio da prática de ilegalidades no exercício das suas funções, mesmo que esteja em curso um inquérito no Ministério Público por causa do bodo de relvados sintéticos distribuídos a eito por associações de Ovar com o alto patrocínio (e o respectivo cheque) do presidente da concelhia de Ovar e seu emérito vereador. Mas mesmo em tempos de suspeita contaminação da política pela justiça (e vice-versa) nem tudo o que é legalmente admissível tem o condão de ser ética e politicamente aceitável. É aí que a complacência do austero e vetusto Rui Rio se desmorona e enterra fundo a sua missão algures entre o messianismo e a profecia que promete a regeneração do regime. Um director de campanha pode ganhar na sua terra com uma margem de 83% dos votos desde que não haja a certeza de que carrinhas de associações financiadas pela autarquia andassem a transportar militantes; podia ser um líder indisputado num território eleitoral se não se viesse a descobrir que num endereço de Esmoriz estavam registados 17 militantes do PSD com quotas em dia quando, na verdade, aí viviam apenas oito pessoas e nenhuma era do partido. Está provado que, em Ovar, as eleições do PSD se basearam em métodos indignos de um partido democrático.
Depois do perfume de trapaça que exalou nos domínios de Salvador Malheiro, seria recomendável que um líder que tem pela frente a duríssima tarefa de conciliar os militantes, de reerguer um partido e de criar uma imagem de confiança no país fosse cauteloso na forma como estende os tapetes de acesso ao poder. Não foi isso que aconteceu. Salvador Malheiro mereceu o elogio público de Rui Rio na noite da sua vitória (quando já se sabia das extravagâncias eleitorais em Ovar) e continuou a aparecer nos títulos dos jornais como um dos grandes gurus da estratégia do novo líder. É vê-lo responder à letra ao desafio de Miguel Pinto Luz (também ele um personagem à procura de um autor), dizendo que a sua carta aberta ao novo líder é “irresponsável”. É vê-lo incumbido da crucial missão de encontrar uma solução para a liderança da bancada parlamentar ao organizar um jantar com deputados do PSD em Coimbra. É vê-lo como inspirador de uma moção que acabaria por ser rejeitada por não cumprir os mínimos requisitos democráticos do funcionamento interno do partido.
Ninguém pediu ao PSD que oferecesse ao país um líder eivado da nobre missão de limpar a imagem da política, de enxugar a verborreia dos magistrados nem de meter na ordem os excessos dos jornalistas. Foi Rui Rio que se propôs desempenhar esse papel e, para sua sorte, o PSD subscreveu as suas teses e entronizou-as com razoável folga. Aqui chegados, custa a perceber como pode estar em causa a concessão de uma vice-presidência do partido a Salvador Malheiro no congresso do próximo fim-de-semana – de acordo com o que se lê nos jornais. Ou a atribuição a este personagem de um estatuto de pivot na articulação de uma estratégia para a bancada parlamentar.
Bem se sabe que, nos labirintos dos jogos partidários, é muito difícil cruzar princípios com sindicatos de votos ou mensagens de transparência com interesses do aparelho. Mas se há alguém que sabia desses riscos, se há alguém que os não podia correr era Rui Rio. Ao colocar-se acima do mundo profano da política com a capa de uma imaculada castidade, o novo líder tinha o dever de saber que qualquer pequena nódoa será visível à distância. E ter entre o seu círculo próximo um autarca com talento para angariar votos a qualquer custo e que distribui 2,2 milhões de euros em relvados sintéticos instalados por correligionários do partido é bem mais do que uma pequena nódoa: é uma mancha indelével e feia que contamina a aura com que se apresentou ao país.
Num partido fragilizado pelos custos do ajustamento e da troika, cindido entre facções, desorientado na doutrina, perdido na ideologia e no programa e intimidado por um PS forte e confiante, erros deste calibre contam. Porque tornam menos audível e mais duvidosa a sua mensagem. E porque dificultam a criação de uma equipa que mostre um PSD capaz de mobilizar o que de melhor existe na sociedade portuguesa, como tantas vezes fez no passado. É boa notícia ver lá gente experiente e sensata como Manuel Castro Almeida, quadros novos, inteligentes e competentes como Fernando Alexandre e seria bom (para o PSD e para o país) envolver pessoas abertas e cosmopolitas como Poiares Maduro ou Jorge Moreira da Silva. Mas, será que Rui Rio oferece à nova geração um projecto mobilizador?
E é também nesta equação que entra Salvador Malheiro. Como diria Cavaco Silva, a má moeda afasta a boa. Ninguém se sentirá honrado ou enaltecido se for convidado para um órgão no qual terá ao lado um cacique especializado na caça ao voto ou empenhado na arte de seduzir por via de relvados sintéticos ou de brincadeiras de Carnaval. Ninguém receoso do caminho da política em direcção a um pântano de princípios voláteis e de promessas por cumprir quererá dar o corpo às balas em nome de um líder que, à primeira oportunidade, troca o “banho de ética” por um prato de lentilhas nas querelas do PSD. Bem sabemos que tudo isto é triste e tudo isto faz parte do fado tradicional dos partidos. Rui Rio, porém, construiu-se com base numa letra diferente e ganhou o PSD com uma música diferente. No primeiro ensaio a sério vale tudo, menos desafinar.