Para Raúl Hestnes Ferreira
Texto de apresentação de Raúl Hestnes Ferreira ( (1931-2018) escrito pela arquitecta Marta Macedo que foi sua aluna e trabalhou no seu atelier, lido a 10 de Julho de 2014, Dia Nacional do Arquitecto, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Faz em Setembro 19 anos que me cruzei pela primeira vez com o arquitecto Raúl Hestnes Ferreira. À época, eu era estudante de primeiro ano no Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra e o Raúl era professor de projecto. Devo admitir que este não foi um encontro isento de conflito.
Tal como outros colegas, demorei a habituar-me à sua concepção algo elástica sobre o horário lectivo. As aulas com o Raúl estavam agendadas para as quintas feiras ao início da tarde, mas era apenas depois das 9 da noite que o víamos estacionar a sua 4 L branca no pátio da escola. Nas primeiras semanas, a consternação da turma perante semelhante atraso esbarrava com o seu contentamento. É que à chegada a Coimbra havia sempre uma paragem para jantar num dos restaurantes típicos da baixa. A turma ainda ensaiou uma rebelião, rapidamente abortada.
Cedo nos apercebemos de que as suas aulas compensavam a espera. Eram horas inebriantes em que as casas de Palladio conviviam com os edifícios de Louis Kahn, as obras de Corbusier com as igrejas de Borromini, a arquitectura de Barragán com as ruínas de Roma antiga, numa cadência marcada pelo clic da máquina de slides.As palavras do Raúl davam sentido a este caos aparente.
Sem complexos formais ou cronológicos, ali aprendia-se através da história da arquitectura a olhar para a geometria, os materiais, o espaço e as relações de escala com um novo espírito crítico. Foi um ano que me deixou memórias felizes, e por isso, quando concluí o curso, foi no seu atelier que procurei trabalho.
Durante cinco anos fiquei a conhecer por dentro a sua obra e o seu talento a projectar. Quem alguma vez visitou o atelier na Villa Sousa rapidamente percebe que este é o produto de uma pessoa singular. Pilhas de rolos, esquiços nas paredes, recortes de jornais, maquetas empilhadas até ao tecto, criando torres de geometria instável, podem desesperar um jovem arquitecto à procura de rumo. Mas tudo isto faz parte do um método de trabalho, lento e reflectido, no qual somos chamados a participar. Ao seu lado e de outros colegas desenhei elementos deste edifício, longe de saber que, anos mais tarde, haveria de fazer parte da minha vida de investigadora. O empenho e a entrega com que o vi dirigir o atelier fez-me perceber por que chegava tão tarde às aulas em Coimbra.
Não posso esconder que o facto de me ter escolhido para o apresentar hoje e neste lugar me enche de orgulho. Na verdade, levamos já muitas horas de discussões em torno da arquitectura e, achou que posso dizer, de conversa como amigos. Enquanto aluna e arquitecta no seu atelier foi crescendo a minha admiração e respeito pelo Raúl. Conheço poucas pessoas tão sérias e dedicadas ao seu ofício.
Aqueles que lidam com ele de perto sabem que, de acordo com o seu sistema de valores, o trabalho se sobrepõe a todas as outras dimensões da vida. Conheço também poucos arquitectos com a sua coragem. Desprezando modas e convenções, produziu uma obra única, durante algum tempo incompreendida e mal amada. Conheço ainda poucos homens que, depois do reconhecimento público de uma carreira, se mantenham modestos. Poderíamos pensar que os prémios e homenagens que tem recebido alimentariam alguma vaidade, mas isso não faz parte do seu carácter.
Raúl Hestnes Ferreira nasceu em Lisboa, a 24 de Novembro de 1931. Neto do deputado republicano e fundador da Universidade Livre Alexandre Ferreira e filho do escritor e poeta José Gomes Ferreira, encontrou dentro da família sólidas referências estéticas e políticas. Na sua vida, os estudos artísticos e a militância oposicionista haviam de caminhar par a par. Frequentou o liceu Camões, o Gil Vicente e o Colégio Académico, inscrevendo-se em 1950 na Escola de Belas Artes.
Logo em Fevereiro de 1952 foi expulso da Universidade com outros colegas, depois de uma acção contra a NATO. Nesse mesmo ano mudou-se para as Belas Artes do Porto para prosseguir os estudos de arquitectura, nunca abandonando a luta contra o regime fascista. Foi Presidente da Associação de Estudantes e com outros membro do MUD juvenil acabou preso pela PIDE, cumprindo pena em Penamacor. Foi julgado e absolvido. Aos 27 anos decidiu sair do país, para as nações da social democracia emergente — Noruega, Suécia e Finlândia —, onde trabalhou em vários ateliers e aprendeu com a arquitectura dos grandes mestres modernos, como Alvar Aalto.
Terminou o curso em Lisboa, recebendo o diploma em 1961, com 19 valores. Em Portugal deixou construída a primeira obra, a casa para o pai em Albarraque, antes de partir para mais uma jornada que mudaria a sua arquitectura. Em 1962, cruzou o Atlântico e fixou-se na Costa Leste dos Estados Unidos. Estudou no Departamento de Arquitectura da Universidade de Yale e da Universidade da Pensilvânia, onde obteve um Master in Architecture.
Talvez seja hoje difícil reconhecer o impacto que a experiência urbana em Filadélfia entre os anos de euforia do pós-guerra e a explosão dos conflitos sociais que marcaram a América nos anos 60 teve na obra. Mas é fácil imaginar a influência na vida de um jovem arquitecto de professores como Paul Rudolph, Louis Mumford, Charles Eames ou Louis Kahn. Raúl Hestnes Ferreira conheceu-os a todos. Mas foi no atelier de Louis Kahn, onde trabalhou durante dois anos, que encontrou a sua principal referência. Com Kahn percebeu que era possível inventar uma nova arquitectura, resultante da síntese entre a tradição clássica e o legado moderno. Com ele redescobriu também a cultura arquitectónica mediterrânica.
De volta a Lisboa integrou o Gabinete Técnico de Habitação da Câmara Municipal e durante uma década a Direcção-Geral das Construções Escolares. Mas foi no pós-25 de Abril, já no atelier instalado na Villa Sousa, que realizou as suas principais obras. Na verdade, o trabalho de Raúl Hestnes Ferreira resulta do compromisso entre um profissional de convicções políticas fortes e um país que se construía de novo. Dando forma e matéria ao direito constitucional à habitação, à educação e à cultura, o seu currículo compõe-se sobretudo de encomendas públicas.
Em Beja, planeou os bairros João Barbeiro e Estrada de Lisboa e a Casa de Cultura e da Juventude. Na Moita deixou construída a Biblioteca Municipal Bento de Jesus Caraça. Em Évora trabalhou na remodelação do Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo. Em Lisboa, enquanto membro das brigadas SAAL, desenhou no Campo Grande o Bairro Fonsecas e Calçada. Na capital projectou ainda a Escola Secundária José Gomes Ferreira em Benfica, a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, o Complexo do ISCTE, do qual este edifício faz parte. Não é coisa pouca.
Os vários edifícios que compõem o ISCTE e o ICS constituem, para mim, a sua obra mais completa. O desenho destes edifícios, na exploração ostensiva dos ângulos agudos, dos espaços apertados e difíceis, está apenas ao alcance dos grandes arquitectos. É também no modo como entende o programa, uma escola para a democracia, que se encontra a grandeza desta obra. À imagem de uma cidade, os edifícios do ISCTE são um espaço de liberdade, com largos e praças, mil e uma entradas, recantos e passagens, que, sob um céu azul, dão lugar uma infinidade de encontros furtivos, reuniões informais, ou pontos de fuga. Afinal esta é a sua ideia de escola, um sítio onde cada um deve construir o seu percurso com autonomia.
A importância do legado de Raúl Hestnes Ferreira não se resume somente aos edifícios que ajudaram a transformar a paisagem urbana portuguesa contemporânea. A marca que deixou em várias gerações de estudantes que tiveram o privilégio de com ele aprenderem a projectar é tão sólida como a sua obra construída. Nestas duas dimensões da sua prática entendemos como é que a arquitectura pode dar corpo a uma sociedade justa e democrática.
Texto escrito e lido por Marta Macedo, em 2014, no Dia Nacional do Arquitecto, quando a Ordem dos Arquitectos fez uma homenagem a Hestnes no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Ela foi sua aluna e trabalhou no seu atelier.