Que aconteceu a D. Manuel Clemente?
Como é que nestes tempos de tentações integristas e intolerância religiosa, um homem como parecia ser D. Manuel Clemente se permite o pecado da inclemência e da falta de lucidez mais rudimentar?
Começo por uma confissão: sou agnóstico, nunca casei pela Igreja e, por isso, não me sinto minimamente afectado no plano pessoal pela declaração de D. Manuel Clemente, cardeal patriarca de Lisboa, sobre a abstinência sexual que os casais em situação considerada irregular pelos padrões eclesiásticos deveriam manter. Mas como cidadão de um país de maioria confessionalmente católica (eu próprio fui baptizado, fiz a primeira comunhão e, durante a adolescência, fui crente convicto) não me considero alheio à intensa polémica suscitada pela posição do bispo de Lisboa, alvo de muitas críticas, por vezes acerbas, de membros do clero e personalidades de vários quadrantes. Não vou, por isso, insistir no mais óbvio: a declaração de D. Clemente, além de ostensivamente retrógrada, absurda, estúpida e ridícula, é de natureza hostil à orientação progressista de abertura e compaixão preconizada pelo actual Papa Francisco (hostilidade essa compartilhada pelos elementos mais reaccionários e empedernidos da Cúria Romana que se empenham em sabotar todos os passos de Francisco a favor da renovação da Igreja e da sua reconciliação com o espírito cristão original).
Há, no entanto, um aspecto que me deixa perplexo e em que talvez seja acompanhado por outras pessoas – crentes ou não: a trajectória de D. Manuel Clemente, pelo menos desde que foi bispo do Porto, parecia claramente contraditória com as posições que vem defendendo nos tempos mais recentes em matérias relacionadas com a moral e os costumes dos católicos praticantes. Salvo erro de observação típico de um leigo e laico como sou, D. Clemente inseria-se num longo percurso de "aggiornamento# da Igreja portuguesa – na sequência do Concílio Vaticano II e dos primeiros passos dados pelo visionário Papa João XXIII –, que se iniciou com D. António Ribeiro, sucessor do cardeal Cerejeira, na transição da ditadura para a democracia.
A velha Igreja arcaica e bafienta que se confundia com o salazarismo conheceu uma evolução notória, apesar das naturais resistências ultra-conservadoras, identificando-se progressivamente com o espírito da sociedade democrática em que passámos a viver. Ora, D. Clemente pareceu, de início, o representante mais qualificado, até pelos seus atributos intelectuais e académicos, para representar esse espírito, culminando assim o processo de "aggiornamento" do catolicismo português.
Foi, por isso, aliás, que um júri de personalidades identificadas com os valores culturais de uma sociedade aberta decidiu conceder-lhe, em 2009 – era D. Clemente ainda bispo do Porto –, uma das mais prestigiosas distinções nacionais: o Prémio Pessoa (a primeira vez, note-se, que foi atribuído a uma personalidade da Igreja). E o júri justificou a escolha de forma inequívoca, considerando o premiado "uma referência ética para a sociedade portuguesa no seu todo" e sublinhando que "a sua intervenção cívica tem-se destacado por uma postura humanística de defesa do diálogo e da tolerância, de combate à exclusão e da intervenção social da Igreja".
Como é que alguém com estas qualidades se transfigura no defensor da "vida em continência", essa formulação sumamente hipócrita com que agora D. Clemente pretende obrigar os casais "irregularmente" recasados a abdicar de ter relações sexuais? Como é que um intelectual e homem de cultura de méritos reconhecidos pode sofrer uma regressão tão aparatosa de raciocínio e sentido do real, convidando implicitamente os recalcitrantes a abandonarem uma Igreja fechada sobre si própria e divorciada da sociedade? Como é que nestes tempos de tentações integristas e intolerância religiosa – de que o radicalismo islamista é a expressão mais extrema –, um homem como parecia ser D. Manuel Clemente se permite o pecado da inclemência e da falta de lucidez mais rudimentar? É verdadeiramente um mistério.