Red Trio: uma década a improvisar uma linguagem

Em comemoração do 10.º aniversário de uma das formações mais relevantes do universo do jazz português, o Red Trio, convida 14 músicos para uma suite no Teatro Maria Matos.

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Red Trio Sara Rafael
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Hernâni Faustino, Rodrigo Pinheiro e Gabriel Ferrandini André Cepêda

Os blind dates são coisa comum no mundo da música improvisada. De uma perspectiva purista, aliás, não haverá maior verdade a emergir da música do que aquela que possa brotar de um encontro entre instrumentistas que não se conhecem e que, à vista de todos, se forçam a encetar um diálogo mais ou menos profícuo. É o risco absoluto: a química pode não resultar, não é raro que aí se intua alguma surdez ao que o outro propõe, é um processo de conhecimento mútuo que tanto pode ditar a absoluta imposição de uma linguagem sobre outra, como uma busca desesperada de vasos comunicantes. Tem tudo para falhar. Só que quando corre bem é como se um portal para uma nova realidade se abrisse.

Era neste frenesim de encontros avulsos, ditos ad hoc no meio jazzístico, que andavam Hernâni Faustino e Rodrigo Pinheiro há dez anos. Até que num desses concertos de formações variáveis, no Hot Clube, chamados por Ernesto Rodrigues, se puseram a falar e perceberam um interesse idêntico na música que queriam fazer e na criação de um grupo que contrariasse estas formações que se consumiam na duração de um concerto. Na cabeça de Hernâni Faustino pairava já a ideia de um trio de piano, embora a escassez de pianistas activos na improvisação livre mantivesse essa vontade numa sistemática falta de concretização. Com Rodrigo as peças encaixaram finalmente, juntando-se logo em seguida um baterista que começava a despontar, atraído por esse mesmo abismo da música sem rede – Gabriel Ferrandini. Nascia então o Red Trio.

“Quando começámos o trio, não fazíamos a menor ideia de que íamos estar dez anos a tocar juntos”, confessa Hernâni Faustino, dias antes do concerto comemorativo do 10.º aniversário do grupo que tem lugar este sábado, em resposta a uma encomenda do Teatro Maria Matos, em Lisboa. “Claro que a nossa música agora é completamente diferente daquela que fazíamos no início”, observa Rodrigo Pinheiro. “O grupo transformou-se, cada um de nós também mudou como músico e como pessoa. A uma coisa mantemo-nos, no entanto, fiéis – à improvisação livre.”

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Hernâni Faustino, Rodrigo Pinheiro e Gabriel Ferrandini André Cepeda

Esses anos iniciais, “cujo trabalho ainda se reflecte hoje em dia”, dizem, ficaram registados no álbum de estreia pela Clean Feed, em 2010, altura em que não estariam longe de referências como Cecil Taylor ou Alexander von Schlippenbach. “Havia muita energia e a música era muito forte”, refere o pianista acerca desse período. “Os temas eram mais rápidos e agressivos do que hoje.” Com os anos, o Red Trio tornou-se “menos rude, menos áspero”, ganhando em subtileza.

Tal transformação começou a notar-se sobretudo a partir de Empire, álbum lançado no ano seguinte, com a presença de um convidado, o saxofonista inglês John Butcher, que provocou o primeiro abalo na identidade do trio. “Adoro o John Butcher, mas foi o músico mais difícil de todas as colaborações que tivemos”, confessa Rodrigo Pinheiro em forma de elogio. A dificuldade expressada corresponde à exigência de uma resposta à altura e que obrigou a música do Red Trio a chegar a zonas que até então nunca tinha visitado. A recepção internacional de Empire, amplamente elogiado, levou a que o Red Trio se tornasse presença regular nos festivais dedicados à música improvisada — no Jazz em Agosto o grupo havia de gravar, também com Butcher, em 2015, o álbum ao vivo Summer Skyshift.

Festa com muitos convidados

John Butcher é um dos muitos convidados do concerto deste sábado do Red Trio no Teatro Maria Matos. O desafio lançado pelo programador de música da sala lisboeta, Pedro Santos, foi o de cada um dos três elementos do grupo se responsabilizar pela composição de uma parte desta suite estreada em palco. 

Os três desconfiam desta palavra, “composição”, aplicada à sua música. “A improvisação é algo superdemocrático e livre”, contrapõe Rodrigo Pinheiro, sublinhando que apenas contribuirá com algumas propostas de organização para a sua peça e o seu ensemble. Cada um escolheu a sua constelação de músicos para a suite, num conjunto de 14 convidados (em palco serão sempre nove ou dez), que incluem Butcher, Sei Miguel, Fala Mariam, Mattias Stahl, Ricardo Jacinto, Carlos Santos, Nuno Torres, Ernesto Rodrigues, Luís Vicente, Pedro Sousa, Miguel Mira, Rodrigo Amado, David Maranha e Miguel Abras.

Suite enquadra-se nas experiências levadas a cabo pelo Red Trio em que os seus elementos aceitam alterar provisoriamente as regras do jogo. Foi assim quando se lançaram, por exemplo, na reinterpretação de temas de Ornette Coleman no GNRation, em Braga, ou quando musicaram curtas-metragens dos irmãos Lumière no Festival de Cinema de Foz Côa, ocasiões em que tiveram de deixar-se invadir por um mínimo de estrutura.

Certo é que, após este concerto comemorativo, o desejo é o de voltarem a gravar a três. Nunca tendo deixado de tocar ao vivo em trio, as colaborações foram-se avolumando de tal maneira – a última foi a digressão partilhada com Mattias Stahl e Axel Dörner – que essa tentadora forma de escapar às rotinas e de engrandecer as experiências foi deixando em pousio o registo de quem é o Red Trio hoje. É isso que se seguirá. E a resposta poderá ser surpreendente – até para os próprios.

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