Dançar o arrependimento, ou como os Peeping Tom redefiniram a psicoterapia
Vader, primeiro capítulo de uma trilogia que a companhia belga dedica à família e à memória, chega esta quinta-feira a Viseu. A seguir, sobe a Guimarães para encerrar mais um GUIdance, que entra agora na sua recta final – a mais internacional desta edição.
Quando os Peeping Tom começaram a trabalhar na primeira peça de uma trilogia dedicada à memória, e fundada nos alicerces de uma família nuclear, um médico relatou-lhes o caso de um lar, na Bélgica, que mantinha vários dos seus ocupantes numa cave húmida, sem janelas, com cogumelos a brotar das paredes e um indesmentível ambiente de prisão. Os últimos meses daqueles que eram enviados para esse lugar subterrâneo pareciam atirá-los para um limbo: não estando ainda mortos, eram porém roubados à vida.
“Colocavam lá em baixo as pessoas sem família – porque só as famílias se queixavam dessas condições”, conta Franck Chartier, que em 2000 fundou os Peeping Tom com Gabriela Carrizo. É esse espaço que, em parte, vemos recriado no cenário de Vader – espectáculo que esta quinta-feira se apresenta em estreia nacional no Teatro Viriato, em Viseu, e que no sábado encerra o GUIdance – Festival Internacional de Dança Contemporânea, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães. As janelas a oito metros de altura, os cogumelos a insinuarem-se na sala e essa atmosfera de vida cercada pela morte.
Só que, no caso da companhia belga, esse quadro tétrico e lúgubre que podia encaminhar Vader ("pai", em neerlandês) para um lugar de desespero e de uma opressão insuportável, abre espaço para a intromissão da música, do humor e de um desassombro que cria empatia pelas figuras em palco e não repugnância pela situação. Em Moeder ("mãe"), segundo capítulo da trilogia que, paradoxalmente, vimos primeiro em Portugal – no Festival de Almada e em Guimarães –, o cenário de um museu interior era invadido por uma sucessão de memórias desconexas, do nascimento à morte, com frequentes paragens num tom surreal que estava, no entanto, longe do absurdo.
Vader decorre num registo paralelo, com insinuações pontuais de doenças como Alzheimer e Parkinson. O lar é o espaço habitado por um velho que não recebe visitas da família e que, rompendo o seu isolamento, recupera ou fabrica recordações, senta-se ao piano sem sabermos se visita algum momento da sua vida profissional ou apenas acciona uma fantasia que ficou por cumprir, e que põe em marcha uma constante interrogação sobre o porquê de ninguém o procurar.
Franck Chartier fala repetidas vezes no arrependimento como um dos motores criativos de Vader. E sabe que há uma origem muito concreta para que essa seja uma coordenada fundamental. Há alguns anos – Vader estreou-se em 2014 –, Franck e Gabriela dirigiram um workshop para idosos em Paris, dedicado precisamente a essa temática. “Aquilo que recebemos em apenas dois dias”, recorda ao PÚBLICO, “foi um grande choque, extremamente intenso e era já uma peça por si só". E explica: "Percebemos nessa altura que algumas pessoas, apesar de aparentarem felicidade e nos falarem com um sorriso, carregam grandes dramas nas suas vidas.”
Esse tornou-se então um ponto fundamental em Vader: os acontecimentos que não dão descanso e martelam a cabeça durante anos a fio, mas também a exploração de histórias, perdas, decisões e recordações mais ou menos felizes que, por alguma razão, são largadas pelo caminho e podem reaparecer quando o corpo entra em descanso forçado e os caminhos percorridos são sobretudo os emaranhados das memórias.
Uma questão de meia-idade
Franck nasceu em França, Gabriela na Argentina. Ele saiu de casa dos pais aos 15 anos, ela aos 19. Talvez por isso, admite Chartier, esta trilogia sobre a memória caia fatalmente no reduto da intimidade e da família. “É possível que tenhamos saudades ou sintamos a falta das nossas famílias”, confessa. “E parece-nos importante analisarmos e explorarmos esta marca inconsciente que temos sempre da relação com o nosso pai, a nossa mãe e a criança que éramos com os pais, o porquê de nos aproximarmos ou nos afastarmos deles, por que razão os amamos ou detestamos, por que pensamos num pai enquanto pai e não enquanto indivíduo.”
O fundador dos Peeping Tom não contém o riso perante a tentadora ideia de ver em Vader – e em Moeder – a sugestão de uma sessão de psicoterapia com público. “É possível que seja um pouco”, diz, “mas não tanto assim.” Até porque cada um dos bailarinos/actores do elenco, que flutua o tempo todo entre a linguagem teatral e a linguagem dançada, é convidado a trazer as suas próprias histórias para o palco, criando um caleidoscópio de imagens que compensa pela sua beleza onírica qualquer aparente falta de coerência narrativa. De resto, nos pensamentos que possam assaltar a cabeça de alguém que deixa as memórias chegarem em atropelo, não tem de existir ordem nem raccord.
Vader e Moeder – Kind, a estrear em 2019, será outra história – provêm também de um confronto dos Peeping Tom com a chegada à meia-idade e um questionamento cada vez mais constante do passado, dos sonhos idos, daquilo que já se fez ou deixou por fazer, do quanto aquilo que se é corresponde àquilo que se imaginou ser. E em ambas as peças a música irrompe pela cena, como elemento de vida e deflagrador de memórias, e ajuda a abrir janelas perras para um mundo interior mais profundo. É que, apesar de todo o tom a roçar o surreal, tudo está carregado de verdade. “Para nós, para que seja interessante tem de ser profundo”, justifica Franck. “Para superficial já temos o YouTube.”