Annette Bening: Beleza americana
Uma conversa com a actriz de As Estrelas não Morrem em Liverpool, que captura a beleza efervescente e o magnetismo tão particular daquela que foi uma presença perturbante do film noir, Gloria Grahame.
Gloria Grahame, actriz de espírito livre, é a “estrela” de que fala o título do filme de Paul McGuigan. Baseado nas memórias de Peter Turner, um aspirante a actor trinta anos mais novo do que Grahame (1923-1981) que manteve com a actriz um romance apaixonado, é um emocionante panorama dos últimos anos de uma mulher talentosa que hoje está algo esquecida. Teve um dos seus primeiros papéis em It’s a Wonderful Life/Do Céu Caiu Uma Estrela (1946), na altura em que se considerava que não tinha perfil para estrela. Foi despejada, por isso, no film noir. Mas foi quando se revelou excepcional no papel de dama desenrascada e de meretriz de criminosos com uma irresistível atracção sexual. Em In a Lonely Place/Matar ou não Matar (1950), com Humphrey Bogart, atreveu-se a ficar nua por baixo de um lençol em vez de vestir camisa de dormir. Foi nomeada para o Óscar de Melhor Actriz Secundária por Crossfire/Encruzilhada (1947). Acabou por ganhá-lo por The Bad and the Beautiful/Cativos do Mal (1952), que estabeleceu um recorde para a representação mais curta a ganhar um Óscar — nove minutos em cena, foi o suficiente.
“O título, The Bad and the Beautiful [Os maus e os belos], resume a sua personagem no ecrã”, diz McGuigan (Gangster N.º 1, Lucky Number Slevin/Há Dias de Azar e Victor Frankenstein). “Para além de [Humphrey] Bogart, Gloria contracenou com Robert Mitchum, Lana Turner e Kirk Douglas e apareceu em alguns dos noirs clássicos: Sudden Fear/Medo Súbito (1952), The Big Heat/Corrupção (1953), Human Desire/Desejo Humano (1954) — mais uma vez, os títulos dizem tudo.”
É Paul McGuigan a fazer as apresentações, porque para muitos isso será necessário, de Gloria Grahame Hallward, nascida em Los Angeles, Califórnia, em 1923. Por altura da sua morte em 1981, aos 57 anos, era mais conhecida pelos seus dramas privados do que como actriz. Teve quatro maridos, o mais conhecido dos quais o segundo, Nicholas Ray, realizador de Rebel without a Cause/Fúria de Viver. Diz-se (dizem os boatos) que Ray a encontrou um dia na cama com Tony, o seu filho de 13 anos, e que depois disso a carreira dela entrou em declínio — divorciaram-se em 1952. Gloria acabaria por ter o seu casamento mais estável, durante 14 anos, com Tony Ray, que foi o quarto marido, que desposou em 1960 e com quem teve dois filhos. Conheceu Peter Turner três anos antes de morrer. O argumento de As Estrelas não Morrem em Liverpool foi escrito por Matt Greenhalgh (Control, Nowhere Boy, The Look of Love/O Império do Amor), mas Turner participou na promoção para colocar os pontos nos “ii”. Por exemplo, disse ao New York Post que os relatos de Grahame ter sido encontrada na cama com o enteado são “apenas ficção”. Acrescentou: “O escândalo surgiu quando ela estava numa difícil luta pela custódia dos filhos com o terceiro marido, Cy Howard, que a depenou. Quando mais tarde ela se casou com o filho de Nick, os jornais aproveitaram-se imenso disso. Ela nunca deu entrevistas... manteve a sua vida privada, e sofreu em virtude disso.”
Turner escreveu as suas memórias em 1986, mas demorou 22 anos até que a história chegasse aos ecrãs. E isso nunca teria acontecido se não fosse a produtora Barbara Broccoli, amiga íntima. “Quando não andava a fazer aqueles filmezinhos do Bond, a Barbara estava empenhada neste argumento e nesta história”, conta McGuigan. “Ela é amiga do Peter há 40 anos, existe uma ligação muito forte, mas também queria contar esta história de uma mulher da sua idade e com uma presença muito... como a Barbara. Nunca teríamos conseguido os estúdios de Pinewod para filmar se não fosse ela.”
Broccoli tinha inicialmente pensado em Annette Bening, chegaram a encontrar-se há muito tempo, mas decidiram que Annette era demasiado nova. Agora Bening está perfeita para Grahame, captura a sua beleza efervescente e o seu magnetismo tão particular. A actriz, 59 anos, foi nomeada para um BAFTA por esta actuação. O filme acompanha Grahame quando conheceu Turner (interpretado por Jamie Bell) numa residencial de Londres, trabalhava em teatros ingleses e estava na mó de baixo. Estava afastada da família e ninguém se mostrava interessado nela excepto, ao que parece, Turner. Peter viajou com ela para Nova Iorque e Los Angeles, apesar de não saber que a actriz padecia de cancro da mama, que se recusava a tratar, até já ser demasiado tarde. Após dezoito meses juntos, ela afastou-se de Turner, mas acabou por lhe pedir ajuda ao perceber que estava a morrer. Nas suas últimas semanas de vida foi ele quem cuidou de Gloria na casa dos pais, numa zona operária de Liverpool, e onde ela foi aceite como família. Acabou por morrer em Nova Iorque algumas horas após ter sido levada pelos seus filhos.
“Imagino que Gloria nunca tivesse realmente conhecido alguém como Peter”, diz Annette Bening. “Sabemos alguma coisa sobre os seus relacionamentos. Casou-se quatro vezes, e esteve casada com homens famosos, e também com outros que não eram famosos, e eram certamente pessoas complicadas e difíceis. Teve muitos divórcios tempestuosos e batalhas legais por custódia, e todo o tipo de cenas maradas, mas na realidade não sabemos muito acerca dela. Por isso tive de aprender tudo com Peter, e Peter adorava-a. Acho que isso era novo para ela — a maneira como ele a adorava. Muitos homens tinham-se apaixonado por ela, mas não como Peter o fez. Ele é um homem muito especial. Quando o conhecemos, percebemos isso perfeitamente. Acho que o facto de existirem todas as outras coisas à volta deles, a diferença de idades, e ela ser uma antiga estrela de cinema e tudo isso, para eles era irrelevante.”
O casamento de Bening, como sabemos, apresenta também uma grande diferença de idades. “Vinte e um anos”, frisa orgulhosamente. Bening terminou com a vida de playboy de Warren Beatty quando se casaram em 1992, após se terem conhecido nas filmagens de Bugsy, o romântico filme de Barry Levinson no qual os dois eram protagonistas, ele como o mafioso Bugsy Siegel e ela como Virginia Hill. Têm quatro filhos.
“Temos ideias preconcebidas acerca do que é apropriado ou não é apropriado para duas pessoas quando elas se apaixonam: seja por uma pessoa mais velha, uma pessoa mais nova, uma pessoa do mesmo sexo, uma pessoa do outro sexo”, diz Bening. “Mas para muitas pessoas, quando se apaixonam, isso simplesmente acontece-lhes — tem que ver com o que se passa entre elas, não tem que ver com a idade. Gloria e Peter tiveram uma relação amorosa muito intensa.”
De facto, Turner está sempre a reviver o romance, uma e outra vez, diz Jamie Bell (31 anos), o actor que deu vida a Billy Elliot no filme do mesmo nome, que provém também de um ambiente de classe operária de província e que facilmente absorveu as origens de Turner — e que está aqui sentado ao lado de Bening.
“Às vezes é frustrante para Peter, e tenho a certeza de que por vezes ele pensa: ‘Mas o que é eu fiz?’ Depois há outras alturas em que ele olha para aquilo e fica muito grato por Gloria, por fim, estar a ter uma história contada acerca dela, e por as pessoas a poderem conhecer e ela não ser esquecida. O melhor que ele fez por nós foi ter-se distanciado e deixado que ficássemos com o controlo da história dele, e sermos os actores da sua própria história.”
Uma das coisas mais dolorosas para Turner quando assistiu ao filme foi ver de novo o declínio de Grahame, após esta ter recusado tratamento para o cancro. “Ela tentou automedicar-se com caroços de alperce e sumo de uva, algo que tinha lido num livro”, explica Bell. “Pensava que isso de alguma maneira a ia ajudar, ou atrasar [a doença], ou melhorá-la, e acho que o nível de negação a que chegou no último período da sua vida é imensamente devastador. Ela não conseguia ser honesta e enfrentá-la.”
“Acho que isso acontece a muita gente”, acrescenta Bening. “Estou cada vez mais a ficar consciente de como tanta gente esconde a sua doença. De certa forma queremos dizer-lhe: ‘Por que razão não aceitaste os tratamentos?’ Mas ela não tinha dinheiro, e tinha de ganhar a vida, e também tinha receio de assustar os seus filhos. Acima de tudo não queria que ninguém soubesse, porque isso iria afectar o seu trabalho.”
Apesar de tudo, o filme é surpreendentemente animador. Existe muita alegria, particularmente na cena de dança em que o antigo Billy Elliot solta o dançarino que há dentro de si — e Bening também não é nenhuma desajeitada, como recentemente provou no programa de TV Tonight Show, de Jimmy Fallon.
“O filme trata essencialmente de temas mais pesados e coisas difíceis, por isso estava desejoso de chegar à parte em que podia soltar-me e divertir-me e dançar”, lembra Bell. “Não houve ensaios — apenas uma câmara de mão a seguir-nos pela sala. Procurei o [filme] Saturday Night Fever no meu telemóvel, a tentar arranjar passos novos. Gravámos três ou quatro vezes e no fim estávamos exaustos. Ficámos dobrados, todos suados! Foi espectacular. De facto, a cena consegue alcançar muita coisa. Mostra, de forma muito bela, a ansiedade e a inibição e a atracção sexual, tudo apenas num pequeno número de dança.”
Qual dos dois é melhor bailarino? Bell: “Não vou falar sobre isso!”
Não existe dúvida sobre quem é a maior estrela de cinema, e essa é Bening, quatro vezes nomeada para os Óscares da Academia (por The Grifters/Anatomia do Golpe, American Beauty/Beleza Americana, Being Julia/As Paixões de Júlia e The Kids Are All Right/Os Miúdos Estão bem) e que recentemente nos relembrou das suas imensas capacidades em 20th Century Women/Mulheres do Século XX.
Ela sente que é uma estrela de cinema?
Bell: “Pelo menos comporta-se como uma estrela de cinema!”
Bening: “Isso é bom ou é mau?”, questiona-se. “Não sei, acho que tento não me preocupar com isso. Sinto que tenho sorte por poder fazer o que faço. Todos nos lembramos de quando éramos jovens adultos e nos perguntávamos se conseguiríamos ao menos arranjar um emprego, quanto mais conseguir ganhar a vida e sustentar-nos. Também estive muito tempo a fazer teatro. Penso que a longo prazo isso foi-me muito proveitoso, pois quando chegou a altura de fazer filmes já tinha quase trinta anos. Eu não era muito fã de cinema, não ia ver muitos filmes, o que provavelmente me ajudou. Creio que é mais fácil quando nos tornamos conhecidos já com mais idade, porque já temos experiências de vida que são semelhantes às de toda a gente.”
McGuigan ficou impressionado com a abordagem de Bening. “Não sabia que ela era tão adepta do Método na sua forma de actuar — e com isto quero dizer que não é de uma forma pirosa. Ela é uma espécie de estudante e professor ao mesmo tempo, fazia imensas perguntas acerca da personagem. Tinha feito o trabalho de casa e provavelmente conhecia o argumento melhor do que a maior parte de nós. No primeiro dia de filmagens percebemos o resultado: era magistral. Se tinha de fazer uma cena em que dançava com Jamie, mostrava-se cheia de vitalidade e de vida e saltava como uma adolescente; e quando estava na cama a morrer, a equipa de filmagens estava tão silenciosa como nunca antes tinha visto. Eles estavam literalmente a andar em bicos dos pés, porque acreditavam mesmo no que ela estava a fazer. Nunca falou com ninguém; manteve-se muito quieta e muito dentro da sua perspectiva.”
Basicamente, nota McGuigan, Bening não se parece muito com Grahame fisicamente, mas retira o que é essencial nela.
“Não escolhemos a via da maquilhagem pesada e das grandes próteses, porque muitos dos espectadores não sabiam como era Gloria. A primeira vez que me reuni com Annette para falar sobre o filme, ela tinha livros abertos cheios de anotações. Pensei para comigo: ‘OK, é melhor eu não fazer asneira aqui.’ Warren [Beatty] também conhecia Gloria e toda a gente no meio cinematográfico sabia da vida dela ou conhecia Nicholas Ray e sabia do seu passado.” Diz que Ray era um grande boémio, sofisticado e gastador. “Era uma grande personalidade, um realizador de Hollywood que gostava de drogas e de bebida. Cy Howard também era um tipo engraçado. Gloria casou-se com algumas grandes personalidades.”
Ao enfatizar a artificialidade dos cenários [em parte para não ultrapassar o orçamento do filme, dez milhões de dólares (cerca de 8,1 milhões de euros)], McGuigan tinha como objectivo capturar o ambiente do velho cinema de Hollywood. “Efectivamente quis homenagear esse estilo de filmagem, no sentido de que tudo passava pela câmara. Fizemos todo o tipo de projecções de fundo e acabei por me inclinar para esse tipo de estética. Quando estava a fazer o filme, adorava viajar para cima e para baixo, de Londres para a Escócia, onde vivo, e tinha filmes de Gloria no meu computador. Todas as outras pessoas estavam a ver novelas ou outras porcarias, enquanto eu via aqueles espantosos filmes a preto e branco. Eu era a pessoa mais feliz naquele comboio.”
Elvis Costello é também um grande fã de Gloria Grahame. “Elvis estava tão apaixonado por ela que compôs uma canção para o filme”, conta McGuigan. “Fui assistir a um concerto dele e tornou-se óbvio que ele estava obcecado por esta mulher, pois durante os primeiros quinze minutos esteve projectada uma imagem de Gloria Grahame no fundo do palco. Depois do concerto fui aos bastidores e disse-lhe: ‘Adorava que fizesses alguma coisa para o filme, mas ainda nem começámos a filmá-lo.’ Mais tarde ele veio ver o filme em Nova Iorque e no dia de Natal chegou-me um email que dizia: ‘Um presente do Elvis.’ A melodia da canção de Elvis, You shouldn’t look at me that way, que ele diz que é acerca de duas pessoas que têm muitos segredos, está no corpo do filme. Mas se esperarem até ao fim do filme, a canção está lá. É mesmo bonita.”