Candidato de Trump às Migrações diz que o Corão incita à violência

Ken Isaacs pediu desculpa e disse estar "profundamente arrependido". Norte-americano vai lutar com António Vitorino para o cargo de director-geral da Organização Internacional para as Migrações.

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Isaacs quer ver uma grande manifestação de muçulmanos para acreditar que o islão é uma religião de paz Reuters/PASCAL ROSSIGNOL

O candidato dos Estados Unidos a próximo director-geral da Organização Internacional para as Migrações (OIM) está a ser criticado por causa de declarações em que se refere ao Corão como um manual de instruções para a violência e em que classifica a ligação entre alterações climáticas e conflitos armados como "uma anedota".

Chama-se Ken Isaacs e é o vice-presidente da Samaritan's Purse, uma organização evangélica norte-americana de ajuda humanitária e evangelização que opera em mais de cem países a partir da Carolina do Norte, com delegações na Austrália, no Canadá e no Reino Unido.

Isaacs tem muita experiência na ajuda humanitária no terreno, mas não tem passado em cargos de topo em instituições nacionais ou internacionais – ao contrário do candidato do Governo português, António Vitorino, antigo comissário europeu da Justiça e Assuntos Internos entre 1999 e 2004.

Em qualquer outro ponto na história da OIM, Isaacs teria a vida mais facilitada para chegar a director-geral. Em quase 70 anos, os países-membros nunca levantaram obstáculos quando os EUA apresentaram um candidato – em nove responsáveis desde 1952, oito nasceram nos Estados Unidos e o único forasteiro, o holandês Bastiaan Haveman, chegou ao topo com apoio dos norte-americanos.

Mas esse cenário pode mudar este ano, nas eleições de Junho de 2018, quase dois anos depois de a OIM ter sido aceite como uma "organização relacionada" nas Nações Unidas – um estatuto que garante à organização mais independência do que as agências especializadas formais, como a UNESCO, por exemplo, mas que a fortalece através de acordos de cooperação.

Já se sabia que entre os candidatos ao cargo de director-geral da OIM está o português António Vitorino, que conta com o apoio de vários países europeus, mas a estratégia norte-americana para se manter no topo da organização também não está a ser ajudada pela sua própria escolha. Num artigo publicado no jornal Washington Post, Ibrahim Hooper, director de comunicação do Conselho para as Relações Americano-Islâmicas, diz que a candidatura de Ken Isaacs é "um sintoma da profunda hostilidade da Administração Trump para com os imigrantes, migrantes e muçulmanos".

"É imperativo que estes cargos preservem uma neutralidade em relação à religião e às origens nacionais, e que tenham alguma simpatia pelos que migram sem outra razão que não seja a pressão económica e social que sentem", disse o mesmo responsável.

"Água potável não é um direito humano"

Assim que o nome de Ken Isaacs foi apresentado como candidato, numa conferência de imprensa da porta-voz do Departamento de Estado, na quinta-feira da semana passada, foram recuperadas várias declarações mais polémicas.

Uma delas, registada no programa de rádio católico First Person, no dia 12 de Janeiro de 2017, é sobre direitos humanos. "Se calhar é por ser mais velho, mas para mim os direitos vêm de Deus e não dos governos. E sempre que um governo concede um direito – digamos que foi decretado por lei que toda a gente tem o direito a água potável, toda a gente tem direito a uma habitação –, quem é que vai pagar por ele? Não interessa o que está no papel, o que interessa é aquilo que se espera da maioria das pessoas e aquilo que lhes é permitido fazer com base nos direitos que lhes foram concedidos por Deus. Infelizmente, a água potável não é um direito humano. É algo que todos queremos que as pessoas tenham, mas não é um direito, não é garantido em nenhum lado, é preciso trabalhar para isso."

Proferida há pouco mais de um ano, esta declaração parece colidir com os princípios da ONU (organização a que a OIM está ligada desde 2016), que há oito anos reconheceu o direito à água e ao saneamento básico como um direito humano.

Mas é por causa de questões religiosas e das questões relacionadas com as alterações climáticas e os conflitos armados que Ken Isaacs tem sido mais criticado – tal como em outros casos na relação da Administração Trump com instituições e acordos internacionais, Isaacs não está alinhado com os pontos de vista dominantes na Europa.

Num dos muitos textos que escreveu e partilhou nas suas contas em redes sociais como o Facebook e o Twitter (que passou nos últimos dias a estar fechada à maioria dos utilizadores), o norte-americano referiu-se ao acordo de Paris sobre as alterações climáticas, em 2015, como "uma anedota".

"O encontro em Paris, na próxima semana, não vai ser uma reprimenda [ao Daesh]. Vai ser uma anedota em forma de jantar e uma diversão em relação aos verdadeiros assuntos", escreveu Isaacs, contrariando uma ideia defendida por vários países e organizações – a de que "as alterações climáticas são uma ameaça directa em si mesmas e um multiplicador de muitas outras ameaças, da pobreza aos conflitos", como disse o actual secretário-geral da ONU, António Guterres, num discurso na Universidade de Nova Iorque em Maio de 2017.

O vice-presidente da organização Samaritan's Purse também partilhou as suas convicções sobre o islão, e sobre quem deve ser considerado uma prioridade na hora de ajudar os refugiados: "Há dois grupos de refugiados. Alguns podem regressar a casa e outros não. Os cristãos não poderão regressar. Têm de ser a primeira prioridade", escreveu Ken Isaacs no Twitter quando o antigo Presidente norte-americano, Barack Obama, mostrou abertura para receber no país mais refugiados sírios. Nesse mesmo dia, o candidato dos EUA a director-geral da Organização Internacional para as Migrações pediu uma prova de que o islão é "uma religião de paz": "Vamos ver dois milhões de muçulmanos no National Mall a manifestarem-se contra a jihad e a defenderem a América! Ainda não vi nada disso!"

"Profundamente arrependido"

Depois de estas declarações terem sido reveladas, Isaacs veio dizer que está "profundamente arrependido" e sublinha que foram "comentários nas redes sociais". "Foi descuidado e causou preocupação entre os que manifestaram a sua fé na minha capacidade para liderar a OIM. Comprometo-me a cumprir com os mais altos padrões de humanismo, dignidade humana e igualdade se for escolhido para liderar a OIM", disse o candidato norte-americano.

Mas este pedido de desculpas não é suficiente para Giulia Laganà, analista sénior no Instituto de Políticas Europeias da Open Society Foundations, uma rede financiada pelo magnata George Soros, um feroz crítico do Presidente Donald Trump.

"Os Estados Unidos têm uma longa história de apresentar candidatos de alto gabarito e muito experientes para cargos de topo no sistema multilateral, muitos dos quais são diplomatas de carreira com um conhecimento do sistema da ONU, o que deveria ser um pré-requisito para estas posições", disse Laganà ao PÚBLICO por email.

No caso do candidato norte-americano, a especialista considera que lhe faltam "algumas dessas qualidades", e que "as suas declarações públicas ao longo dos anos em assuntos como o pluralismo religioso, a islamofobia, os direitos da comunidade LGBTI e a pandemia do HIV/sida põem-no em desacordo com os princípios e os valores das Nações Unidas".

E é por isso que Laganà vê no português António Vitorino um melhor candidato – porque tem "um forte apoio da maioria dos países europeus, entre eles alguns dos maiores doadores [da OIM], quer bilateralmente quer através da União Europeia", e porque "a posição isolacionista dos Estados Unidos no último ano" pode fazer com que um europeu volte a liderar a organização 57 anos depois do holandês Bastiaan Haveman – sendo apenas o segundo em 67 anos.

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