“Uma mulher vive bem sozinha. Eles nem com a Bimby se desenrascam”
A viuvez deixa-os perdidos no espaço doméstico, incapazes de apontar a localização do fogão ou do frigorífico. Elas, pelo contrário, manejam muito mais facilmente a solidão. Eis uma das razões – para além das demográficas – que ajudam a perceber por que há quatro vezes mais viúvas do que viúvos.
A conversa começa com três cães. Óscar, Lassie e Sara ganem contra a porta que lhes foi fechada no focinho enquanto a dona, Maria Fernanda, se senta no sofá azul-acinzentado da sua sala para contar da decisão de não voltar a casar desde que, faz 24 anos no dia 22, um aneurisma cerebral lhe levou o marido. “Foram dez anos plenos de aborrecimentos, felicidade, brincadeiras, cumplicidade. Só nos separávamos para trabalhar. Quero ficar com esse sabor. E por isso não, não tenho vontade nenhuma de ter uma nova escova de dentes à beira da minha”, remata, logo para começo de conversa.
Cabelo cuidado, boca realçada por um batom com brilho, Fernanda é uma das 627.567 viúvas apuradas pelos Censos 2011 do Instituto Nacional de Estatística (INE). Na altura, havia apenas 143.097 homens com o mesmo estado civil. Elas eram, portanto, mais do que o quádruplo. Mais recentemente, dos casamentos dissolvidos por morte em 2016, resultaram 32.943 viúvas contra apenas 13.331 viúvos, ainda segundo o INE.
Este abismo quantitativo entre viúvos e viúvas é, antes de mais, de ordem demográfica. Eles vão menos ao médico, morrem mais cedo, enquanto elas contam com uma maior esperança de vida à nascença. O resultado é que, logo a partir dos 30 anos de idade, há 95 homens por cada 100 mulheres. O abismo demográfico, mensurável através da chamada relação de masculinidade, agudiza-se à medida que a idade avança. Entre os 60 e os 64 anos de idade, a população portuguesa compõe-se de apenas 87 homens por cada 100 mulheres.
“Esta sobremortalidade masculina tem a ver com comportamentos de saúde. As mulheres são mais cautelosas, vão mais ao médico, cuidam mais da saúde do que os homens, apesar de estes tenderem a fazer mais exercício físico. Alguma literatura da área da biologia diz que o cromossoma feminino, o XX, é mais resistente do que o XY masculino. Geneticamente, até à idade dos 50 anos, elas beneficiam de um processo hormonal que as protege relativamente às doenças cardíacas”, introduz a socióloga Ana Fernandes.
As diferenças na esperança de vida à nascença – e o abismo demográfico entre elas e eles que daí resulta – explicam por que há mais mulheres do que homens, seja qual for o respectivo estado civil, a partir de determinados escalões etários. Mas não explicam, concordam a socióloga, o psiquiatra e a demógrafa ouvidos pelo PÚBLICO, por que é que, uma vez viúvos, eles tendem a recasar muito mais e muito mais depressa do que elas. Dos 32.399 casamentos celebrados em 2016, 430 foram protagonizados por viúvos, contra apenas 282 viúvas que acederam voltar ao altar ou à conservatória.
Homens têm prazo de validade mais longo
“Há muitas mulheres que depois da experiência de uma vida a aturar um homem não estão para aturar outro. Ainda há pessoas que aprendem com a experiência”, atira o psiquiatra Francisco Allen Gomes. Especializado em sexologia, aponta várias assimetrias no envelhecimento, muito para além dos aspectos biológicos: “Uma mulher não precisa de um homem para lhe coser as peúgas, enquanto os homens se habituaram a viver sempre numa certa dependência das mulheres nas tarefas domésticas e do dia-a-dia”.
“Uma mulher vive bem sozinha. Eles nem com a Bimby se desenrascam. E olhe que elas já trazem livros de receitas”, reforça Maria Fernanda. Aos 67 anos, fala do que vê entre os amigos viúvos, “que parece que não sabem como viver”. No caso dela, foram precisos três anos para fazer o luto. “Nesses três anos posso dizer que não existi. Emagreci 40 quilos. Fiquei fora deste mundo. Nem para os cães era boa companhia. Nessa altura, o meu filho foi meu pai, minha mãe, minha cozinheira e minha lavadeira”.
Um dia acordou e deu-se “um clique”. “Voltei a pegar nas rédeas e decidi: ‘Agora é por aqui’.” Tinha casa própria, reinventou-se como ama, inscreveu-se numa universidade sénior, dedicou-se ao voluntariado. Ao cão que tinha enquanto casada somou outros três – uma deles, uma cadela, morreu há pouco. Costuma ler-lhes em voz alta. “São a minha família canina que me ouve muito atentamente. Não comenta, mas também não é desagradável”, brinca.
Ao mesmo tempo, alimentou uma rede de afectos fora do espaço doméstico. E, apesar da desigualdade quantitativa, diz que não lhe faltaram pretendentes dispostos a fazê-la alterar o estado civil. “Há uns anos, um enfermeiro ficou viúvo e, uns meses depois, convidou-me para almoçar. Respondi-lhe que não tinha fome. E pus-me logo na defensiva. Tanto que, por causa disso, estive três meses sem fazer voluntariado [no Hospital de S. João] ”.
Não é, como aventa o psiquiatra Allen Gomes, porque se tenha sentido prejudicada no “ganha e perde” do seu casamento. É porque se reabituou a decidir sozinha. E não se vê a reaprender o que mais lhe custou no casamento: conjugar o verbo nós. “Já casada, se alguém perguntasse ‘vêm cá almoçar domingo?’, eu respondia: ‘Vou’. E depois desculpava-me. Não era por querer, era mesmo porque estava habituada a decidir sozinha. Tive que reaprender que não era só eu.”
A história de Fernanda não será a mais típica porque este casamento de que fala foi, na verdade, o segundo. O primeiro durou um ano e um dia e acabou “de forma muito traumática,” com o marido a devolvê-la, ainda 18 anos e já grávida, a casa dos pais, depois de uma sova. Foi durante os anos que se seguiram que esta ex-administrativa aprendeu a contar consigo própria. O segundo casamento aconteceu devagarinho, à medida que Fernando – também ele viúvo e pai de uma criança – começou a fazer-se presente. “A tia dele, que estava a viver comigo, lavava-lhe e passava-lhe a roupa a ferro. Ele vinha buscá-la e, no início, achei-o um intrometido. Fui até antipática. Depois, a tia começou a convidá-lo para vir almoçar connosco aos domingos e as coisas aconteceram normalmente, quase nem me apercebi.”
Dissolvido este segundo casamento que durou dez anos, Fernanda recusa liminarmente a hipótese de voltar a sopesar “os gostos e contragostos” de um novo casamento. “Sou dona do meu sofá”. E nisto aproxima-se daquilo que diz Allen Gomes quando considera que, uma vez viúvas, elas “manejam melhor o problema da solidão”. Isto apesar de tenderem duas vezes mais para a depressão: “Provavelmente porque a vida as castiga mais e o estatuto a mesma coisa.”
“Um humilhante processo de desqualificação sexual”
“No passado, a questão de uma mulher voltar a casar era muito menos bem-vista do que num homem. E isso pode ajudar a compreender um certo tipo de comportamento”, acrescenta, a propósito, Maria João Valente Rosa. Na procura de explicações para o facto de elas, uma vez viúvas, não arriscarem tão facilmente novas núpcias, a demógrafa nota que “os homens ganham mais do que as mulheres com o casamento”. Concomitantemente – neste raciocínio feito à medida das gerações mais velhas, em que o garante da vida doméstica recai sobre as mulheres –, os homens saem muito mais prejudicados com a sua dissolução. “Ela pode perder o rendimento do homem, mas o resto mantém-se: continua a saber onde é o frigorífico e o fogão e nem a comida varia nem o sabor da comida varia. Os homens, ao contrário, porque direccionaram todo o seu investimento para fora do espaço doméstico, ficam completamente perdidos. Não é, aliás, à toa que muitos acabam por casar com a empregada doméstica.”
À logística quotidiana somam-se outras explicações para a maior propensão masculina para o recasamento. “Os homens têm um prazo de validade mais longo no mercado matrimonial. Podem ter filhos até muito tarde e isso ajuda-os a projectarem-se noutra família. Em termos reprodutivos, as mulheres perdem a validade com a menopausa”, aponta Ana Fernandes.
Somam-se ainda, segundo a socióloga, razões de ordem económica que obstam ao segundo casamento. “Em Portugal, se as viúvas ou viúvos casarem novamente perdem o direito à pensão de viuvez. Isso ajuda a que não haja muitos novos casamentos nestas categorias etárias”.
Muito mais do que deter-se na perda de benefícios fiscais, o psiquiatra Allen Gomes recorre a uma das célebres frases da escritora e activista norte-americana Susan Sontang para legendar esta realidade. “Ela dizia que, para a maior parte das mulheres, o envelhecimento constitui um humilhante processo de desqualificação sexual. E isto tem que ver com padrões estéticos e de beleza que nos levam a achar que as rugas neles são charme e nelas são envelhecimento.”
Para o psiquiatra, já ninguém se atreverá hoje a vaticinar que a menopausa é o fim da sexualidade, o que não invalida, porém, que as conversas sobre a sexualidade dos velhos continuem marcadas por “um certo tom jocoso” e por um maior estigma em relação à sexualidade das mulheres. Ou como lhe disse um dia alguém a propósito da vida sexual dos pais: ‘O meu pai ainda vá, agora a minha mãe…”.
O psiquiatra não acredita, aliás, nos estudos que pretendem demonstrar que, entre os mais velhos, os homens manifestam mais interesse em sexo do que as mulheres. “Creio que isso é uma defesa natural das mulheres face à penalização que resulta de viverem mais tempo, ou seja, se elas não têm grandes hipóteses de escolha, concluem que mais vale não sentirem nada, não lhes apetecer nada.” Sobre este assunto, Maria Fernanda prefere não levantar o véu mais do que isto: “Não quero repetir experiências”. E se durante a conversa volta a referir-se ao assunto é apenas para contar como lidou, ao longo destes anos, com abordagens menos respeitadoras da sua decisão: “Quem julgou que eu era tecido de apalpar, levou com a mala no focinho”.