Leonor vai formosa e não segura
Leonor, cavaleira da mais insigne ordem de cavalaria, que não leu Camões nem se enfadará com a mitologia do Tosão de Ouro, sabe pelo menos que as monarquias são um conto de fadas para as revistas cor-de-rosa.
Leonor decerto não conhece Luís de Camões, nem nunca lhe sopraram carinhosamente aqueles versos, “Descalça vai para a fonte/Leonor, pela verdura;/vai formosa e não segura”. No Centro Privado de Enseñanza de Santa Maria de los Rosales, Leonor não cuida de trovas portuguesas. Também o que lhe interessaria esta homónima tão antiga, que “Leva na cabeça o pote,/o testo nas mãos de prata,/cinta de fina escarlata,/sainho de chamalote;/traz a vasquinha de cote”, e ainda por cima “vai formosa e não segura”? Leonor vai segura e mesmo certa, sem lho terem citando, ou porventura tendo ouvido demais, de que “chove nela graça tanta/que dá graça à formosura”. Mas Camões não entra naquele colégio, onde estuda a única pretendente a um trono europeu que frequenta o ensino privado.
Leonor também não se lembrará do Duque de Borgonha, Filipe III, que levava o curioso cognome de O Bom, sabe-se lá por que artes. Já passou tempo demais, quase 600 anos, pois foi nos idos de 1429 que sua Alteza criou a Ordem do Tosão de Ouro, “uma das ordens de cavalaria mais prestigiosas e antigas da Europa”, apressa-se a explicar a Wikipedia, que sabe tudo.
Leonor talvez não tenha ouvido a história graciosa da Argo, essa nave que atravessa a mitologia, comandada por Jasão, acompanhado dos filhos dos melhores da Antiguidade, lá estava Hércules, filho de Zeus, Teseu, o maior herói grego, Orfeu e tantos outros, corajosos Argonautas navegando pelos mares em nome de uma vingança dinástica e para encontrarem o Tosão de Ouro, esse que deu nome à ordem de cavalaria. Newton, dado a cosmologias, calculou pela posição dos astros que a busca tivesse ocorrido no ano 939 antes da nossa era, portanto há 2957 anos. Como é que Leonor haveria de saber da aventura?
Leonor também não deve ter visto a lista dos cavaleiros da Ordem do Tosão de Ouro, apreciaria ela cruzar-se com Sarkozy, tacões altos no Salão Real, o rei da Arábia Saudita, a única família que dá nome ao seu país, o czar da Bulgária, o rei da Tailândia, o Grão-Duque do Luxemburgo, tudo boa gente, e, mais mundanamente, o chefe da NATO e um banqueiro, garbosos cavaleiros do Tosão? Mas Leonor saberá, e certamente apreciará, que desde o tempo da sua mãe até as mulheres passaram a poder receber a insígnia, e ela é uma das primeiras a pregá-la ao peito (um íman escondido garantia não haver riscos com o alfinete, esclarecem as revistas).
Saberá Leonor que a Ordem do Tosão de Ouro tem os seus dissidentes, que a Casa de Bourbon, que veio de terras francesas, e que em Espanha se ajustou a Bórbon, tem uma ramo austríaco, e quem sabe se algum mais por aí, que, sabedor da importância das insígnias, reclama um Tosão próprio, o mais verdadeiro, o que a deixa a ela como a pretendente de linhagem pura ou como uma usurpadora, vá-se lá saber?
Lembrar-se-á em todo o caso Leonor, princesa das Astúrias, de lhe ter sido concedida essa graça aos 10 anos. Mas teve de ter paciência. A insígnia, a condecoração mais distinta de Espanha, só lhe foi entregue agora aos 12, pelo pai, o rei, não podia ser cavaleira enquanto ainda fosse uma criança. A aplaudi-la, estavam na cerimónia vinte jovens da sua idade, dos 11 aos 14, todas vencedoras de um concurso de redacção em que tinham que desenvolver o tema fascinante, “O que é um Rei para ti?”. Diz uma revista que estas vencedoras da pena “trouxeram a sua frescura à solenidade da cerimónia”, ficam tão bem ao lado dos hussardos que ocupam os cantos do salão, de espada em riste.
Leonor, cavaleira da mais insigne ordem de cavalaria, que não leu Camões nem se enfadará com a mitologia do Tosão de Ouro, sabe pelo menos que as monarquias são um conto de fadas para as revistas cor-de-rosa.