Um Humanário de corpo e voz rumo a um futuro desconhecido
Única estreia absoluta do GUIdance, a nova criação de Rui Horta, uma “partitura coreográfica” para 32 jovens, sobe ao palco do Centro Cultural Vila Flor este sábado.
Foram vários os fins de semana em que Rui Horta teve de se aventurar em viagens de 800 quilómetros de ida e volta entre Montemor-o-Novo e Guimarães para construir, a partir das diferenças no seio de um grupo “muito heterogéneo” – que inclui bailarinos profissionais, jovens estudantes de artes performativas, músicos e amadores sem experiência de palco –, um “objecto artístico comum”, unificado pela voz e pelo movimento, que se vai mostrar pela primeira vez ao público no GUIdance, o festival internacional de dança contemporânea de Guimarães cuja oitava edição arrancou na quinta-feira, com Autobiography, de Wayne McGregor.
A inspiração para colocar humanos “tão diferentes, nas suas idiossincrasias”, a “remarem para o mesmo lado" floresceu no ano passado, do desejo de trabalhar com a comunidade e do fascínio pelas pessoas que, após um dia de trabalho, saem de casa para, por exemplo, cantarem num coro amador. Rui Horta vê esse tipo de encontro como “um acto social da maior importância, quase de rebeldia para com uma sociedade intimidante, que faz com que as pessoas fiquem no conforto de casa”. “Cantar num grupo coral é um belíssimo acto de encontro da humanidade”, diz ao PÚBLICO o coreógrafo.
Se a ideia de coro enquanto acto comunitário foi o ponto de partida para Humanário, o ponto de chegada, espera Rui Horta, será a “beleza e a autenticidade” expressas pelos 32 intérpretes em palco, o ser humano a ser humano com “toda a sua força, a sua inteligência e a sua enorme fragilidade”, características que a “arte traduz nas suas diversas expressões”.
No mar de diferenças que compõe este manifesto de humanidade, há, porém, como traço comum, a juventude. “A maioria do grupo que eu escolhi na audição anda nos 20, 30 anos, e eu acabei por ter uma peça jovem”, diz Rui Horta. E daí que emerge a “ideia de futuro implícita” na obra. Uma “coisa misteriosa”, “imaginável, mas impossível de desvendar”; para o coreógrafo, a luz para o revelar pode vir de quem está predisposto a “expressar a sua criatividade” num tempo em que a sociedade “formata toda a gente”. “A criatividade é a maior declaração que podemos fazer para o futuro. Se não formos criativos, não teremos um grande futuro”, reitera o autor.
Para tal declaração ganhar vida em Humanário, Rui Horta compôs uma série de “solos em movimento”, cada um deles um “manifesto poético” fruto da “pulsão interior” de cada intérprete, e trabalhou depois para um “equilíbrio constante entre o grupo e o indivíduo”, aventurando-se num território que lhe é estranho: a voz.
Depois de já se ter cruzado com a música noutras peças, quer em Portugal, quer no estrangeiro – esteve na fundação do S.O.A.P Dance Theatre, em Frankfurt, na Alemanha, em 1990, e de 1998 a 2000 foi coreógrafo residente do Muffathalle, em Munique –, o artista descreve que trabalhar com voz é como “escrever uma partitura coreográfica”, ao invés de “trabalhar uma partitura já feita, já escrita”. “Como é que um coreógrafo faz uma peça sonora? Eu não tenho treino musical. A minha especialidade são os corpos”, questiona-se.
Precisamente por isso, a obra foi criada em parceria com Tiago Simães, músico vimaranense que também nunca se aventurara na dança. A coreografia construiu-se para os intérpretes a partir deles mesmos, à medida que os ensaios decorriam. Ao PÚBLICO, Tiago Simães diz que Humanário é uma paisagem de som e movimento na qual o público vai rever-se: ali encontrará seres humanos envolvidos nos “seus problemas e nas suas querelas”, mas também nas “suas amizades”.
Agitação
Rui Horta é o coreógrafo em destaque nesta oitava edição do GUIdance. Além da estreia absoluta de Humanário, o festival inclui a reposição, a 7 de Fevereiro, de Vespa, o solo que estreou em 2017 e que marcou o seu regresso ao palco. Ali procura lidar com o tormento de actos que nem sequer podem dizer-se falhados, por não terem sido tentados. Se esse solo, onde está “pronto a ser desmembrado”, lhe exige “uma entrega sacrificial”, já a manifestação da humanidade de 32 pessoas sobre um palco é uma peça de “enamoramento pelo outro”, mas que, ao mesmo tempo, o aproxima de si mesmo, não tendo já de provar nada a ninguém.
Tanto numa como noutra peça, os intérpretes “expõem-se imenso”, procurando “desvendar e descobrir”. “Qualquer criação artística tem de ser generosa, tem de tirar de nós coisas que normalmente não tiramos”, defende o coreógrafo. Essa vulnerabilidade presente na arte torna-se, a seu ver, um “acto cultural profundo” quando é recebida pelo público, agitando-o e desestabilizando-o. Para Rui Horta, a importância da cultura reside nessa tensão. “As pessoas ficam depois com estas ideias a gravitar dentro delas. Esta agitação é mesmo um acto de resistência. Por isso, a cultura é tão importante no futuro das nossas sociedades”, observa.