Daimler afasta responsável pela protecção ambiental
É a segunda cabeça a rolar na indústria automóvel alemã por causa do uso de macacos e humanos como cobaias em testes às emissões de gases. Horas depois, a BMW também anunciou que suspenderia pessoal ligado aos testes.
Mais um dia, mais uma demissão no reino dos fabricantes alemães de carros. Depois de Thomas Steg, que foi demitido da Volkswagen (VW), segue-se o responsável pelo pelouro da Protecção Ambiental da Daimler, que produz os Mercedes-Benz, entre outras marcas como os Maybach ou Smart.
Num comunicado publicado nesta quarta-feira por este grupo sediado em Estugarda, a Daimler anuncia que a comissão executiva decidiu afastar "o empregado" que representava a empresa no instituto que testou em macacos e humanos os efeitos do dióxido de azoto (NO2), resultante da combustão de combustível em motores a diesel.
O comunicado não identifica a pessoa que foi afastada, mas a imprensa alemã noticia que se trata de Udo Hartmann, que tutelava as Relações Externas e a Protecção Ambiental, tal como o seu homólogo da VW demitido na terça-feira. Ao final da tarde, a agência Reuters noticiou que a BMW também iria suspender todos os funcionários que poderão ter estado ligados a estes testes. Sem identificar quantos nem quem, o grupo BMW garante, porém, que o(s) visado(s) pela suspensão permanece(m) na empresa.
A Daimler era, a par da VW e da BMW, um dos fundadores e financiadores do EUGT, um organismo privado que trabalhava nas questões da protecção ambiental e de saúde. A Bosch também esteve na criação do EUGT, tendo saído em 2013.
Foi este instituto – que servia os interesses de lobbying da indústria automóvel e, em particular, de quem o financiava – que fez testes com macacos, em 2014, revelou há uma semana o New York Times, nos EUA, onde os ensaios foram levados a cabo. No domingo, o diário de Estugarda, Süddeutsche Zeitung, acrescentaria mais detalhes sobre testes às emissões, noticiando que o mesmo consórcio promoveu outro estudo, em 2016, com a Universidade de Aachen, na Alemanha, em que 19 homens e seis mulheres, descritos como jovens saudáveis, foram expostos a testes semelhantes, para avaliar os riscos das emissões diesel. Tal como os macacos nos EUA, as cobaias humanas na Alemanha foram expostas durante diversas horas ao gás NO2.
A Daimler diz agora que "a abordagem do EUGT contradiz os valores e princípios éticos" do grupo e, por essa razão, "distancia-se claramente dos estudos e do EUGT", que já não existe, uma vez que foi extinto em 2017.
"Estamos consternados pela natureza e pela execução destes estudos", garantem os proprietários da Mercedes-Benz e Mercedes AMG, acrescentando que "condena da forma mais veemente as experiências" realizadas.
O afastamento de Udo Hartmann "é imediato" e "embora a Daimler não tenha tido influência no tal estudo, lançou uma investigação, com apoio de uma empresa externa de advogados", refere este grupo de Estugarda naquela nota que termina com a promessa de que pretende uma "investigação completa para garantir que estas coisas não se repitam".
A polémica tem marcado os últimos dias tanto na forte indústria automóvel alemã como no plano político, com o tema a chegar rapidamente ao debate no parlamento. A submissão voluntária de animais ou humanos ao gás NO2 é criticado, apesar de a universidade envolvida no uso de cobaias humanas ter vindo a público afirmar que o ensaio foi aprovado previamente por uma comissão ética independente. Isto porque o interesse da indústria é tornar o diesel socialmente aceite – ambos os estudos feitos nos EUA e na Alemanha acabaram por não estabelecer nenhuma relação conclusiva entre a inalação de NO2 e problemas de saúde.
Porém, em 2017, o Parlamento Europeu analisou um relatório, encomendado dois anos antes, que não deixava dúvidas sobre as implicações do monóxido de azoto (NO) e do dióxido de azoto (NO2) – mencionados sempre em conjunto pelo símbolo NOx – na saúde e a responsabilidade da indústria automóvel. "O excesso persistente de emissões de NOx pelo sector automóvel, aliado ao aumento da quota de mercado dos motores diesel na União Europeia, impediram uma redução rápida das concentrações de NOx (e em particular de NO2) nas cidades (...)", afirma o relatório quando analisa as provas e dados reunidos na altura, concluindo: "Continua a existir um excesso de concentração de NO2 no ar na UE, o que contribuiu para cerca de 72 mil mortes prematuras (...) e 60% desse excesso de NO2 nas cidades é proveniente do transporte viário." As 72 mil mortes prematuras por excesso de NO2 são dados de 2012, aponta o documento.
No parlamento de Berlim, partidos como Os Verdes questionaram o governo se sabia ou não destes estudos e se há financiamento público envolvido no apoio à indústria automóvel germânica para tornar o diesel socialmente mais aceite.
Ao mesmo tempo, jornais como o Handelsblatt revelaram que estes estudos já seriam do conhecimento de alguns políticos que estiveram numa audição em 2016, cuja acta faz referências a estes esforços dos fabricantes alemães. A acta está, aliás, disponível publicamente no site do Bundestag.
Os mais críticos apontam ainda para os riscos de promiscuidade entre a indústria e a classe política alemã, destacando os interesses cruzados. Os exemplos são numerosos: o estado federado da Baixa Saxónia, onde está sediada a VW, detém 20% do capital deste fabricante; Peter Hartz, que trabalhou com o chanceler Gerhard Schröder (SPD) e foi o "pai" da reforma laboral alemã naquele tempo, dirigiu os Recursos Humanos da VW (foi afastado em 2005 e condenado em tribunal a dois anos de prisão com pena suspensa por favorecimento ilícito, fraude em negócios da VW e contratação de prostitutas com dinheiro da VW); Thomas Steg, que foi a primeira cabeça a rolar neste caso que já assumiu contornos de escândalo público, trabalhou com a actual chanceler Angela Merkel (CDU) e com governos do SPD (Schröder).
Em termos económicos, a indústria automóvel alemã é líder europeia e representa cerca de 14% do PIB alemão.