Estas pedras são para quem acredita

São 40 esculturas devocionais, algumas com mais de 600 anos. Saíram das reservas do Convento de Cristo, mas também de igrejas ali bem perto e de museus nacionais. Durante séculos foram objecto de culto e ajudaram a humanizar uma história que está longe de ser fácil de entender.

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Pormenor de Virgem do Leite (séc. XV-XVI) pertencente à colecção do Convento de Cristo Sebastião Almeida
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Técnicas de conservação e restauro preparam uma Nossa Senhora das Dores para a exposição Sebastião Almeida
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São Miguel Arcanjo (sec. XVI), da Igreja Matriz de Carregueiros, Tomar Sebastião Almeida
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Técnicas trabalham na limpeza de um Calvário Sebastião Almeida
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Um Calvário da Escola de Coimbra (séc. XVI), da colecção do Museu de Aveiro Sebastião Almeida
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Este Arcanjo São Miguel, da oficina de Gil Eanes (activo entre 1450-1500), fazia parte da Colecção do Comandante Ernesto Vilhena, doada ao Museu Nacional de Arte Antiga Sebastião Almeida
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Vista geral da Capela do Noviciado, que foi projectada por João de Castilho e que na exposição serve de cenário ao núcleo dedicado a São Miguel Arcanjo Sebastião Almeida
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São Miguel Arcanjo (séc. XV), de João Afonso, parte do acervo do Museu Nacional de Machado de Castro Sebastião Almeida
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Calvário (séc. XV), do círculo de João Afonso, Museu Municipal Santos Rocha, Figueira da Foz Sebastião Almeida

São imagens que carregam medos, esperanças e preces de milhares de mulheres e homens ao longo de séculos. Algumas são de produção rústica, popular, outras são verdadeiras obras de arte. Umas perderam-se do cenário para onde foram criadas e interpelam agora os visitantes nas galerias dos museus ou aguardam a sua vez nas reservas, outras ainda vivem na sua primeira casa, cumprindo a função que lhes foi originalmente confiada no altar de uma igreja matriz ou de uma capela. A muitas falta-lhes a cabeça e é preciso, por isso, adivinhar-lhes a expressão. A partir desta quarta-feira, e até 27 de Julho, estão todas juntas numa das alas do Convento de Cristo, em Tomar, um dos mais extraordinários monumentos portugueses.

No Rasto da Devoção: Escultura em Pedra no Convento de Cristo (Séculos XIV-XVI) reúne cerca de 40 obras, na sua maioria provenientes da colecção desta casa religiosa fundada há mais de 800 anos, mas também de museus nacionais (Arte Antiga e Machado de Castro) ou municipais (Santos Rocha, Figueira da Foz), de igrejas das proximidades (Carregueiros ou Pedreira) e da Diocese de Santarém.

“Não fomos à procura das peças de maior qualidade plástica, embora haja aqui obras absolutamente notáveis, mas das imagens que tiveram e ainda têm grande eficácia devocional, que apelam à emoção e ajudam a explicar aos fiéis, que há séculos atrás não sabiam sequer ler, aspectos altamente complexos da doutrina e das práticas do cristianismo”, diz ao PÚBLICO Maria de Lurdes Craveiro, investigadora da Universidade de Coimbra e uma das comissárias científicas da exposição. Por isso estas esculturas são, de certa forma e para quem acredita, “pedras capazes de tranquilizar e até de curar”.

No Rasto da Devoção toma conta de várias salas da ala do noviciado, a que os visitantes do monumento dão pouca atenção, reconhece a sua directora. “Estes espaços fazem parte do percurso [de visita], mas as pessoas não ficam por aqui muito tempo. E é pena – a capela do noviciado é realmente muito especial”, diz Andreia Galvão. É precisamente nesta “jóia arquitectónica do Renascimento português”, projectada por João de Castilho, o grande arquitecto do Mosteiro dos Jerónimos, a quem se devem também alguns dos espaços mais icónicos do Convento de Tomar, que a exposição termina, numa sala dedicada a São Miguel, “chefe da milícia divina”, que é das figuras mais populares do culto cristão.

Nesta antiga capela encontram-se, por exemplo, uma peça de João Afonso (século XV), celebrado escultor formado no estaleiro do Mosteiro da Batalha mas que trabalhou essencialmente em Coimbra, em que o arcanjo tem um manto com vestígios de vermelho e os objectos com que é habitualmente representado – uma lança na mão direita, com que vence o demónio a seus pés, e uma balança na esquerda, que usa para pesar as almas no juízo final. “O que é mais extraordinário é o detalhe das asas longas, lindíssimas, a expressão serena do rosto”, diz Maria de Lurdes Craveiro, doutorada em História de Arte e professora em Coimbra. Esta figura que hoje está no Museu Machado de Castro estabelece um contraste claro com a da Igreja Matriz de Carregueiros (inícios do século XVI), muito repintada ao longo dos séculos, e propositadamente restaurada para esta mostra.

João Afonso, Diogo Pires o Velho, Diogo Pires o Moço e o grande João de Ruão, de origem francesa e forte influência italiana (a Universidade de Coimbra dedica-lhe um colóquio de 26 a 28 de Abril), estão entre os mestres reconhecidos e estudados. Algum deles terá passado pelo Convento de Cristo? Maria de Lurdes Craveiro não dá certezas, mas lá vai lembrando que há quem defenda, ainda que não haja documentos a comprová-lo, que Ruão é o autor do retábulo do Convento de Santa Iria, ali bem perto.

Esculturas decapitadas

Acabar com um arcanjo guerreiro, que a igreja associa à vitória sobre o demónio, síntese de todo o mal, uma exposição que abre com um anjo que ilumina toda a narrativa cristã e conduz ao culto de Maria, a mãe de Jesus, uma contante desde a Idade Média, é um bom contraponto.

Decapitado, como a maioria das esculturas guardadas nas reservas do Convento de Cristo que deram origem a esta exposição – dividida em seis núcleos temáticos coincidentes com pontos fortes da devoção cristã entre os séculos XIV e XVI –, este anjo com mais de 600 anos ainda tem vestígios de tinta dourada, preta e vermelha.

Terá sido salvo pela União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo (UAMOC), constituída formalmente em 1918 e desaparecida no pós-25 de Abril. A esta associação constituída pela “elite da terra” se deveu, no início do século, a protecção de um vasto património, quando conventos e igrejas estavam completamente a saque ou tinham ocupações indevidas.

Com publicações regulares de grande qualidade, garante a investigadora da Universidade de Coimbra, a UAMOC, que tinha entre os seus sócios o historiador de arte João Couto, que chegou a ser director do Museu Nacional de Arte Antiga, conseguiu reunir dezenas de peças num pequeno museu que instalou no convento. “É claro que o inventário que faz segue critérios que hoje consideramos serem de grande ingenuidade, mas teve o mérito de salvar muitas esculturas que, de outra forma, teriam acabado destruídas ou vendidas no mercado dos antiquários a quem pudesse pagar mais.”

Esse inventário não deixa claro, por exemplo, de onde vem a maioria das peças e a descrição que delas faz é tão sumária que chega a pôr em dúvida a escultura a que se refere determinada ficha. “É um desafio permanente, mas é um ponto de partida muito interessante. O núcleo do convento permite-nos começar a perceber a importância da triangulação Coimbra-Batalha-Tomar na produção escultórica. Com ele podemos começar a lançar hipóteses sobre a circulação dos mestres escultores, sobre as oficinas, sobre as pedreiras de onde vinha o calcário.”

Para estas hipóteses contribui a equipa multidisciplinar que está a trabalhar para esta exposição, uma iniciativa do Convento de Cristo e do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património da Universidade de Coimbra que conta também com o apoio do Politécnico de Tomar, parceiro de longa data deste monumento património mundial há 35 anos, e dos laboratórios Hercules (Universidade de Évora) e José de Figueiredo. Estes três últimos organismos trabalharam na conservação e no restauro das peças e no estudo dos materiais, tarefa ainda muito longe do fim.

“Fizemos o levantamento 3D das esculturas, das patologias e das policromias, mas há ainda muito a fazer”, diz António Candeias, o químico que dirige o Laboratório Hercules, falando de um “processo difícil, complexo”, porque as esculturas estão em estados de conservação muito diferentes. “Algumas estão muitíssimo repintadas e o material original não é perceptível nem à primeira, nem à segunda. Temos um volume astronómico de informação que agora é preciso tratar.”

Só um estudo mais fino, que deverá produzir resultados divulgáveis no próximo ano, poderá dizer de onde vêm as pedras de que são feitas, que tipos de técnicas e tintas foram usadas e que afinidades há entre as oficinas que as terão produzido. E mais uma vez se volta à “triangulação” Coimbra-Batalha-Tomar a que a comissária da exposição já se referiu.

Maria de Lurdes Craveiro fala de três grandes casas religiosas que, em diferentes períodos, terão disputado o poder, concentrado as atenções e os favores régios, assim como a mão de obra mais especializada, sobretudo no que toca à arquitectura e à escultura integrada: o Mosteiro de Santa Cruz (Coimbra), onde começaram por mandar os cónegos regrantes de Santo Agostinho; o Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha), entregue aos dominicanos, mendicantes; e o Convento de Cristo (Tomar), confiado aos monges cavaleiros da Ordem de Cristo.

“Até aos finais do século XVI, Coimbra imperou na produção escultórica em pedra e, por isso, é a mais estudada – conhecemos as pedreiras de onde vem o calcário [Ançã, Outil, Portunhos], conhecemos mestres e oficinas. O protagonismo da Batalha e de Tomar foi episódico. O que sabemos sobre quem aqui trabalhou é ainda muito pouco. Sabemos que os escultores andam de um lado para o outro à procura de trabalho e de melhores condições, mas não podemos identificar com certeza a mão deste ou daquele aqui.”

Uma mãe como as outras

À medida que o estudo for avançando, poderá haver novidades a esse respeito, defende António Candeias, mas nada é, para já, certo. “Muitas das peças sofreram alterações, estão amputadas, os santos perderam cabeça e atributos. Nas que ainda estão ao culto, os repintes causam problemas de interpretação, mas também dão informação relevante sobre a vivência [religiosa] daquelas comunidades”, acrescenta. Comunidades extremamente devotas compostas por pessoas que rezaram (rezam ainda?) a São Brás para que lhes curasse a garganta, que se emocionaram com o sofrimento de Cristo a partir de um Calvário do ciclo de João Afonso ou tentaram compreender a Santíssima Trindade, um dos dogmas mais complicados da narrativa teológica, a partir de uma escultura em que a figura de Deus (é assim a da Igreja da Pedreira) parece “harmoniosa e doce”, diz Maria de Lurdes Craveiro.

Não há, no entanto, figura mais humanizada nestas devoções que a exposição transforma em núcleos temáticos do que a da Virgem do Leite do primeiro módulo, que abre com uma escultura curiosa – Maria não tem cabeça e o Menino Jesus desapareceu quase por completo. Vemos-lhe apenas a mão a afastar delicadamente a roupa da mãe, preparando-se para mamar. “A Virgem do Leite surge para mostrar aos fiéis que também Maria foi mãe e, como tantas outras mães, deu de mamar ao seu filho. É algo perfeitamente natural, humano, identificável. Permite à igreja estar perto daqueles que acreditam. Nesta escultura temos de imaginar o rosto de Maria e de Jesus, mas nem por isso ela perde a força de um gesto humano que cria um momento de grande intimidade”, independentemente de quem está a ver.

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