"O Rendimento Básico Incondicional ainda não passou da fase da utopia"
Paulo Pedroso, 52 anos. O ex-ministro do Trabalho e da Solidariedade que criou, no governo de António Guterres, o Rendimento Social de Inserção, fala sobre outro tipo de apoio universal que motivou um debate no PS este fim-de-semana.
No mesmo fim-de-semana, PS e PSD entraram, cada um à sua maneira, num tema que o PAN e o Livre já tinham tentado colocar na agenda política. No Expresso, lia-se que o texto da moção conjunta de Carlos Moedas e Pedro Duarte ao congresso do PSD, propunha a discussão sobre rendimento básico universal e progressividade fiscal. No Largo do Rato, o PS organizava o debate Rendimento Básico Incondicional: o deslumbramento ao conceito?
Ao PÚBLICO, Paulo Pedroso, um dos oradores convidados da iniciativa PS de Portas Abertas, teoriza sobre o que diz ser "uma ideia para outra sociedade" que já não se organize em função da posição que uma pessoa ocupa no mercado de trabalho. "Mas a política é também a antecipação", conclui, para justificar a pertinência do debate. "E a utopia de hoje..."
Como definiria o conceito de Rendimento Básico Incondicional (RBI): é um subsídio a que os cidadãos têm direito só por existirem ou um instrumento de combate à pobreza?
O Rendimento Básico Incondicional pretende distribuir uma certa quantidade de recursos sem exigir contrapartidas ou impor condições. Se essa quantidade for significativa, reduz substancialmente a pobreza, mas o seu objetivo é afirmar um direito a existir sem estar condicionado pela necessidade de procurar um emprego, um salário ou uma forma de obter dinheiro pela sua actividade, não é combater a pobreza.
Diria que Portugal está preparado para começar a debater esse tema, que já originou uma petição?
Para debater, sim. A ideia existe e tem potencialidades, mesmo se também tem, na minha opinião, sérios inconvenientes e muitos aspectos que necessitam de ser clarificados. Atrai-me pouco a visão de uma sociedade em que uma parte das pessoas seja isentada de todo e qualquer dever de participação na vida social. A imagem que Philippe Van Parijs desenvolveu, do direito a escolher fazer surf de manhã à noite sendo alimentado para isso pela sociedade, não corresponde à minha visão da boa sociedade. Mas a ideia de nos libertar a todos do risco de não ter recursos para viver, que também está subjacente ao RBI tem futuro e temos de debater como lá chegar.
E para implementar o RBI?
Nenhum país do mundo o implementou. Estamos ainda no domínio do desenvolvimento do conceito e de aplicações experimentais e localizadas. Não creio que haja condições para Portugal, aliás, para qualquer país do mundo, fazer mais do que debates e experiências na próxima geração.
O que à primeira vista parece ser uma boa ideia, na verdade é algo muito polémico. Concorda? Na Suíça, por exemplo, os cidadãos rejeitaram, em referendo, um rendimento fixo mensal e universal.
Ser polémico não é necessariamente mau. Não acho que os promotores do referendo suíço tenham prestado um bom serviço à sua causa. Quiseram, mesmo na óptica deles, começar a casa pelo telhado. Há muitas questões para as quais os defensores do RBI não têm ainda respostas coerentes e que têm que ser debatidas. Se quiser, o Rendimento Básico Incondicional ainda não passou da fase da utopia. Há muitas ideias que não sobrevivem ao confronto com a realidade, tendo sido utopias interessantes. Não sei se vai ser o caso do RBI, mas sei que não é algo que deva ser discutido como se estivesse suficientemente maduro para se transformar numa política estruturante.
Há quem defenda que este “apoio” devia ser de cerca de 15% do PIB per capita. É assim que se faz a conta?
Para ser efectivo, o RBI tem de ser caro. Dificilmente poderia ter qualquer efeito prático abaixo desse custo. Provavelmente teria de ser mesmo um pouco mais alto. E, para poder custar uma importância tão significativa, haveria que saber o que queríamos cortar e nessa substituição de despesa se ganhávamos algo de relevante. Deixe-me dar um exemplo. Hoje temos saúde universal e educação universal. Não são prestações em dinheiro, mas são serviços. Se substituíssemos esses serviços por dar dinheiro às pessoas para os comprarem no mercado, acho que não haveria ganhos sociais, muito pelo contrário. Há uma dimensão da questão de que raras vezes se fala. O RBI pretende substituir o Estado-Providência. É uma alternativa a pensões, subsídios de desemprego, serviços básicos como educação e saúde pública e universal. Portanto, não basta saber se a distribuição de dinheiro incondicionalmente é boa. É preciso saber também se é melhor do que a segurança social, a saúde e a educação pública, que substituiria.
Que impacto tem, numa sociedade, a introdução deste rendimento?
Não sabemos, apenas podemos especular. Os defensores esperam que nos dê maior liberdade individual, maior controlo sobre as nossas vidas, porque podemos escolher viver libertos da necessidade de procurar recursos. Eu estou convencido que geraria uma fractura social profunda entre os que “escolhiam” gerar riqueza e os que “escolhiam” receber parte dessa riqueza de cuja produção não queriam fazer parte. A solidariedade assenta muito na ideia de reciprocidade, de dar para, pelo menos em teoria, poder receber. Vejo com muita dificuldade a construção de uma ética assente numa massiva vontade de distribuir sem perspectivas de beneficiar do que se distribui. Essa contradição parece-me decisiva. Por outro lado, as sociedades que saíram do fim das sociedades aristocráticas são sociedades salariais. O salário é um mecanismo produtor de acesso a muito mais do que dinheiro e a modulação dos salários um indicador de igualdade/desigualdade, como o acesso ao trabalho é muito mais do que acesso ao salário. Podemos imaginar uma sociedade em que o princípio estruturante do estatuto social não é nem o nascimento, como nas sociedades aristocráticas, nem a posição no mercado de trabalho, como nas nossas, mas essa sociedade é muito diferente da nossa, e não acredito que o RBI tenha força para a construir.
E no Orçamento de um país como o nosso?
Nas circunstâncias actuais parece-me simplesmente impossível, a menos que aceitássemos destruir o Estado Social. Pode introduzir-se medidas que se inspiram parcialmente no acesso aos recursos como direito de cidadania. O Rendimento Social de Inserção tem o rendimento básico entre as suas fontes de inspiração. Mas não creio que possamos pensar numa prestação de rendimento universal, incondicional e significativa, sem substituir despesa social que é equitativa e eficiente, na educação, na saúde e na segurança social.
O RBI acaba mesmo com o Estado Social (no sentido em que pressupõe que os serviços públicos de Educação e Saúde passem a ser pagos)?
Em teoria, não. Na prática, sim. São duas ideias que consomem demasiados recursos para poderem coexistir sem que uma passe a ser residual.
Só há dois partidos em Portugal que defendem a introdução do RBI. Esta discussão está a chegar ao PS?
Se o Secretariado Nacional do PS promoveu um debate sobre o tema, é porque chegou. E o debate é necessário, mesmo se eu ache que é uma ideia para manter sob exame e não para adoptar, pelo menos nesta fase.
As experiências em curso (como a da Finlândia, por exemplo) já podem ensinar-nos alguma coisa?
Na minha opinião, muito pouco. Porque a experiência finlandesa é de substituição do subsídio de desemprego por uma prestação que não impõe disponibilidade para o trabalho. Não é de acesso universal. Contudo, há que estudar os resultados.