As magistraturas: esse “irritante” quando potencialmente próximo

Um Ministério Público autónomo e um poder judicial independente são tão politicamente incómodos quanto democraticamente indispensáveis.

De forma mais ou menos subliminar, vem-se assistindo, nos últimos anos, temporalmente coincidentes, grosso modo, com o mandato de Joana Marques Vidal, a uma maior visibilidade da actuação do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal no tangente à criminalidade económico-financeira e àquela que pode contender com figuras conhecidas dos vários domínios de actividade, maxime da política e dos negócios.

É evidente que não se pode dizer sem injustiça que os anteriores PGR não actuavam em processos deste jaez, mas penso que aquilo a que hoje assistimos se deve a uma maior proactividade de quem detém a fase processual do inquérito, corporizando os sinais de uma democracia que definitivamente se exibe madura. Não se veja nesta opinião uma defesa da “República dos juízes”, pois não tem existido qualquer exorbitação do poder judicial das atribuições que a Constituição lhe impõe. Mesmo no dito “caso Manuel Vicente”, o MP fez o que lhe competia e o que podia. Em função de uma mais que provável amnistia em Angola, para além de a Lei Fundamental daquele país prever uma clara imunidade nos cinco anos após o termo do mandato de vice-presidente, é lícito a Angola rejeitar o pedido de cooperação judiciária com base na Convenção para o efeito assinada entre os Estados-membros da CPLP e na lei interna angolana. Podemos concordar ou não (pessoalmente discordo) com a extensão temporal da imunidade política que o ordenamento jurídico de Angola confere, mas certo é que aquele país está a limitar-se a aplicar a lei interna, no que é plenamente soberano. O MP português, ciente que a transmissão do processo para aquele Estado implicaria a existência de pressupostos processuais negativos quanto à eventual punição do arguido, em nada se desvia da Lei ao fazer um juízo de oportunidade quanto a esse outro mecanismo de cooperação judiciária internacional, pois não faria sentido, à luz do ius puniendi português, tal remessa, sabendo-se à partida que os factos não poderiam sequer ser julgados. Donde, a única opção parece ser aguardar pelo fim da imunidade, tudo isto sem prejuízo dos prazos prescricionais do procedimento criminal.

O “irritante” de que fala Costa é inaceitável. Quando a Justiça actua em conformidade com a legislação vigente, só deve ser alvo de encómios e não de críticas veladas, no sentido de estarem a perturbar a real politik e a economia. Quando o Estado de Direito se vergar a considerações deste tipo, deixará de o ser e, ao invés de uma “República de juízes”, teremos uma “República sem justiça”. Donde, é muito curiosa a forma como o poder político vem lidando com a maior ou menor acção do MP e dos juízes, pois se no discurso se defende a igualdade de todos perante a Lei e a luta intransigente contra a criminalidade que mais corrói os alicerces da democracia, na prática, quando ela se caracteriza como normal para os padrões do Estado de Direito, mas mais “pró-activa” para os de alguns políticos, o incómodo nasce. Compreensível humanamente, mas sob condição alguma deve perpassar, ainda que nas entrelinhas, os pronunciamentos públicos do poder político. Até porque tal pode conduzir a um indesejável corporativismo das magistraturas (algum também existe) e à convicção que só os procuradores e os juízes são capazes de eliminar os “males” da sociedade, aí sim com possibilidade de invasão da esfera de competências de outros órgãos de soberania. Se bem que, na verdade, a forma como a CRP está arquitectada e, em geral, o ordenamento juscriminal, torne tal perigo mais uma difícil eventualidade que uma dura realidade.

Por politicamente incorrecto que possa ser, limitando-me a uma análise factual, a ideia com que se fica é que o PS lida pior com esta autonomia e independência das magistraturas. Ou, pelo menos, disfarça-a pior, pois, neste domínio, (quase) ninguém estará de mãos limpas. E isto desde que existe aplicação de Justiça no mundo. Ela deve ser eficaz, igual para todos, garantindo a defesa dos arguidos e a protecção dos ofendidos, mas quando se aproxima perigosamente da porta do poder político, saem do armário fantasmas de uma perversão da separação e interdependência dos poderes. Aquilo que julgo ter sido uma inabilidade política da ministra da Justiça no seu comentário sobre a eventual recondução da PGR acabou por ser uma indicação clara de que este Governo se sente “incomodado” com Joana Marques Vidal. Desenganem-se os que pensam que tal a fragiliza. Do que conheço dela, exercerá a plenitude das suas funções até ao último dia de mandato e as recentíssimas diligências processuais noticiadas são disso prova.

O que vai dito serve como singela chamada de atenção — desnecessária, talvez — no sentido de a sociedade como um todo se manter atenta e vigilante em relação a estes “incómodos” deste e de outros Governos com o normal funcionamento da Justiça, de modo a rechaçarmos eventuais tentativas de vitimização do poder executivo ou de endosso para procuradores e juízes da responsabilidade por insucessos que de todo lhes podem ser assacados. Um MP autónomo e um poder judicial independente são tão politicamente incómodos quanto democraticamente indispensáveis.

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