Sri Lanka: quantos lados tem um triângulo cultural?

Da doçura de Kandy, com o templo do dente sagrado, a Polonnaruwa, cidade-modelo em finais do século XII, passando pelas grutas de Dambula e pelo rochedo de Sigiriya, uma viagem cultural e espiritual que se perpetua na memória.

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Uma mulher levanta as mãos em frente ao templo situado do outro lado do lago e nem se apercebe da proximidade de um lagarto com uns dois metros de comprimento quase aos seus pés.

- É um monitor.

O homem que, adivinhando a minha curiosidade ou talvez o meu receio, me presta a informação, fornecida em forma de tranquilizante, acompanha-me ao longo da estrada que bordeja o lago até chegar ao centro da cidade venerada pelos budistas de todo o mundo. A manhã ainda se espreguiça e o sol ameaça romper a qualquer momento a cortina de um branco-sujo que decora o céu sobre aquelas águas que decido contemplar, sentando-me num banco ao lado de um jovem de sorriso fácil.

- Kandy é conhecida pela sua espiritualidade, pelo seu ambiente relaxado, pelo charme. É uma cidade que parece acolher toda a tranquilidade e todas as fragrâncias do mundo, observa Raslan Mansoor, estudante universitário e também de visita à antiga capital do Sri Lanka por uns dias.

O lago, rodeado de magnólias, foi criado em 1807 por Sri Wickrama Rajasinha, o último governador do reino de Kandy, um projecto que motivou protestos de alguns chefes locais face à recusa dos trabalhadores em participar nas obras. Como consequência, foram executados de forma brutal e, para servirem de exemplo, amarrados a estacas no leito do lago enquanto os trabalhos prosseguiam, incluindo aqueles que levaram à criação de uma ilha no centro (ligada ao palácio através de um túnel secreto) deste espaço cénico onde planto o meu olhar, usada por Sri Wickrama Rajasinha como harém e, anos mais tarde, como depósito de munições pelos ingleses.

Rodeada de montanhas com os seus cumes vestidos de um verde brilhante mas não raras vezes envoltos nas brumas, Kandy, situada a pouco mais de uma centena de quilómetros de Colombo, a capital, e a cerca de 500 metros de altitude, é uma das mais bonitas metrópoles do país, conservando uma grande parte do seu encanto e do espírito colonial britânico. Capital do último reino cingalês, Kandy, no coração do País das Montanhas ou das Terras Altas, foi conquistada pelos ingleses em 1815, não sem antes desafiar, ao longo de três séculos, portugueses e holandeses — e mesmo os ingleses, já depois da tomada da cidade actualmente com pouco mais de 100 mil habitantes, tiveram de esperar 16 longos anos para poderem construir uma estrada entre Kandy e Colombo.

Despeço-me de Raslan Mansoor e do lago, da simpatia de um e da serenidade do outro, e acerco-me da agitação que se vive nas proximidades do templo do Dente de Buda — são fortes as medidas de segurança, ainda na sequência dos danos causados por uma bomba detonada (utilizando um carro armadilhado) pelos Tigres de Libertação do Eelam Tâmil (LTTE) em 1998, perto da entrada principal, um atentado que provocou 16 mortos e está ainda vivo em todos os espíritos. Um ataque a um dos mais importantes símbolos do budismo que provocou uma onda de emoção e motivou uma instantânea chuva de donativos de forma a que os estragos causados pela explosão fossem rapidamente reparados.

Atribulações de um dente

O dente é a mais importante relíquia budista e, segundo reza a lenda, foi roubado da pira em chamas durante o funeral de Buda, no ano 483 a.C., antes de ser levado, já no século IV, para o Sri Lanka, camuflado entre o cabelo de uma princesa.

Numa primeira fase, o dente teve como destino a cidade de Anuradhapura e, ao longo dos anos, viajou ao sabor das ondas da história do Sri Lanka, até se fixar em Kandy, se bem que com um conjunto de peripécias que atestam uma existência no mínimo turbulenta: em 1283, foi conduzido de volta à Índia por um exército invasor mas não tardou muito tempo até ser recuperado pelo rei Parakramabahu III; supostamente, já no século XVI, dele se terão apossado os portugueses para o queimar num ambiente de grande fervor católico em Goa, uma versão da história que é prontamente desmentida pelos cingaleses. Segundo estes, o que os portugueses roubaram foi uma réplica, enquanto o verdadeiro incisivo permanecia guardado num lugar seguro — ainda hoje correm rumores de que o dente está escondido algures, pelo que, a fazer fé nesta tese, também o Sri Dalada Maligawa acolhe uma cópia.

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Verdade ou não, durante a visita, os devotos e os turistas, a despeito de serem autorizados a errar pela sala que abriga a relíquia durante as pujas (oblações e orações) são privados de ver o dente, escondido num cofre em ouro (há três chaves para o abrir, uma guardada pelo administrador do templo e mais duas que são confiadas a monges) com a forma de uma dagoba — uma estupa — que contém outras seis dagobas com o mesmo formato mas de diferentes tamanhos (um pouco como as bonecas russas).

Mesmo órfão dessa visão, o viandante sente-se grato quando os seus passos o conduzem ao longo das diferentes divisões que compõem o templo maioritariamente construído sob as ordens dos reis de Kandy, entre 1687 e 1707 e, mais tarde, entre 1747 e 1782, formando parte do palácio real. O principal santuário do dente sagrado, um edifício rectangular de dois andares conhecido como Vahahitina Maligawa, ocupa a zona central de um pátio empedrado, sob um tecto dourado que aprisiona todos os olhares e que foi pago graças aos donativos de japoneses. O rebentamento da bomba, há 20 anos, danificou seriamente a parede frontal e deixou à mostra histórias das anteriores vidas de Buda e pelo menos três níveis de pinturas do século XVIII ao século XX que retratam a perahera.

Perahera significa procissão e esala perahera designa o espectáculo mais magnificente de todo o país, com lugar marcado, todos os anos, em Kandy e em honra do dente sagrado. Durante dez dias do mês Esala (Julho/Agosto), a cidade conhece uma actividade frenética, enche-se de vida e de cor, festejando uma tradição secular (já era descrita em 1681 por Robert Knox, capitão do mar inglês ao serviço da Companhia Britânica das Índias Orientais, no seu livro An Historical Relation of the Island Ceylon) que tem o seu momento de apogeu na última noite, a noite da nikini poya (lua cheia). A procissão, à qual também não passou indiferente Fernão de Queirós, padre jesuíta e cronista português autor da obra Conquista Temporal e Espiritual do Ceilão, é, nos dias de hoje, uma combinação de cinco diferentes peraheras. Quatro delas têm origem nas quatro devales (complexos religiosos que veneram divindades hindus ou cingalesas e que também são devotos ou servem Buda) e a quinta no próprio templo Sri Dalada Maligawa, todos contribuindo para o sucesso de um evento marcado pelo ritmo forte dos tambores, dos dançarinos, dos acrobatas, do movimento das ancas, das bandeiras coloridas que são agitadas durante o desfile que também é acompanhado por cerca de meia centena de elefantes ricamente decorados — num tempo não muito distante eram mais de cem mas este aparente declínio não impede que a perahera seja ainda hoje uma das mais fascinantes celebrações de todo o continente asiático.

Ao início da tarde, embrenho-me pelo jardim botânico (a seis quilómetros de Kandy), considerado um dos mais belos da Ásia e lugar de encontro de casais de namorados capazes de jurar um amor eterno sob palmeiras e bambus gigantes, antes de procurarem lugares menos recatados, na suave colina das orquídeas, perdidos entre a enorme variedade de especiarias ou protegidos pela sombra acolhedora de uma figueira de Java que ocupa nada mais nada menos do que uma área de 2400 metros quadrados.

Quando o dia caminha para o seu final, anunciando já a última carícia do sol, regresso a Kandy, às margens do lago, onde um cego vende lotaria.

Compro uma.

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DEA/C.Rives

As grutas de Dambula

A subida é íngreme — dou por mim a pensar que o Sri Lanka está tão banhado em lendas como eu em suor — mas o esforço logo é recompensado mal avisto, ao fim de uns trinta minutos, toda a planície ao fundo e a estrutura pintada de um branco leitoso sob um rochedo de dimensões biblícas. São as grutas de Dambula, transformadas em mosteiro pelo rei Valagambahu, que foi acolhido no local durante o seu exílio (quando os tâmiles hindus do norte tomaram a cidade de Anuradhapura), no século I a. C., rodeado de uma serenidade que contrasta com a realidade actual.

Em tempos também habitado pelos monges, o mosteiro é visitado por mais de 200 mil pessoas ao longo do ano, uma afluência que, ajudada pelo calor e pela humidade, concorre para uma degradação progressiva das pinturas  dos séculos XVIII e XIX que traçam as grandes etapas da vida de Buda — uma situação que se agravou quando as autoridades religiosas se recusaram, há já mais de 20 anos, a autorizar qualquer obra de restauro num património cultural já por essa altura em perigo.

Entre as cinco salas do mosteiro de Dambula, a gruta número dois, também conhecida por Maharaja Viharaya, é a de maior dimensão (mais de 50 metros de comprimento e mais de 20 de largura) e aquela cuja decoração mais prende o olhar dos turistas. No interior, com a sua luz mortiça, há dezenas de estátuas de budas (algumas do século I), uns sentados, outros de pé, outros deitados e aos pés dos quais os monges e os fiéis depositam as suas oferendas por vezes sem dirigirem a sua atenção para o tecto (que chega a atingir sete metros de altura e do qual tombam constantemente gotas de água que são utilizadas nos rituais sagrados) com pinturas do século XVIII.

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Grutas de Dambula Getty Images

Visito as outras quatro grutas, a Devaraja Viharaya, a Maha Alut Viharaya, a Pachima Viharaya e a Devana Alut Viharaya e, já no exterior, avisto ao longe o rochedo de Sigiriya, como um barco encalhado no meio da selva. Mas a minha atenção tem de se focar nos macacos que andam por ali a enganar os turistas (espreitando para o interior de sacos e mochilas) com a mesma desfaçatez com que se anuncia, uma vez terminada a descida, já aos pés da colina, a presença do maior buda do mundo, com uma altura de 30 metros.

Tão-pouco é o maior do país.  

O rochedo de Sigiriya

Recordo-me tão bem desse trajecto sinuoso, das múltiplas curvas que o autocarro ia descrevendo, quase tantas como as buzinadelas que enchiam a atmosfera silenciosa, por entre as brumas que tardavam a dissipar-se, teimosas, como que adiando a chegada, bem no coração da ilha em forma de lágrima.

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O autocarro emite um derradeiro suspiro junto a um largo de terra batida, cheio de poças de água que reflectem um céu escurecido.

Um elefante passeia turistas pelo alcatrão que serpenteia por entre a vegetação, um casal aproveita a montanha como pano de fundo para as fotografias, e adia, provavelmente para o dia seguinte, como eu, o momento de alcançar o cume onde se situa o palácio-fortaleza, mandado erguer, já no século V, pelo rei Kassapa e encimando o rochedo do Leão.

A sua história merece ser ouvida e contada.

No século V, o rei Dhatusena, de Anuradhapura, foi assassinado pelo seu filho bastardo, Kassapa. O seu irmão e pretendente ao trono, Moggallana, fugiu para a Índia carregando com ele pouco mais do que uma promessa de vingança. Com receio de uma invasão, Kassapa mandou erguer uma fortaleza no inexpugnável monólito de Sigiriya. De pouco lhe valeu. Sigiriya foi mesmo invadida e Kassapa tombou durante uma batalha, momentos antes de as suas tropas desertarem.

Pouco depois da sua morte, o palácio foi abandonado, transformando-se num mosteiro budista e num bastião do reino de Kandy.

Canso-me só de imaginar a subida quando fito uma vez mais aquelas paredes quase verticais. 

É um lugar sagrado, o imponente rochedo de Sigiriya, rodeado de montanhas, de bosques, de jardins tão delicados, e guardando, no sopé, os restos de uma antiga civilização, onde a imaginação me conduz para o que poderia ser o lugar há mil anos ou mais, e para o que me espera, nesse futuro imediato: a ascensão, pelo meio de escadas que ameaçam levar-me ao céu, a tocar a abóbada do mundo, mais de mil degraus, alguns deles flanqueados por frescos pintados com tanta delicadeza, de mulheres com os seios à mostra, na moldura do rosto um sorriso enigmático, verdadeiras ninfas, inatingíveis rainhas de beleza. Seriam esposas ou concubinas do rei Kassapa? Princesas ou simples escravas? A dúvida sobre as mulheres de Sigiriya, sobre estes frescos pintados no século V no flanco oeste do rochedo, a cem metros de altura, persiste, adensa-se, talvez continue a carecer de explicação daqui a muitos anos.

Difícil de perceber, também, por que razão alguns turistas atacam a subida no pico do calor, quando o sol ameaça queimar tudo e todos à sua volta. Sinto-me feliz por percorrer, à mesma hora, o trajecto em sentido contrário, de volta ao vale, de volta a uma pequena família que me acolhe num restaurante humilde, desprovido de estética e, ao mesmo tempo, tão genuíno, órfão de nome e, em simultâneo, com comida tão deliciosa.

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- Paga o que quiseres, disse-me a proprietária nessa noite.

Não me lembro do nome da senhora, do filho que se sentava ao meu colo no meio das refeições, tão-pouco me preocupava em saber, naquela altura, já com tantos lugares visitados, quantos lados tem um triângulo.

Sei apenas que tem este sorriso que se perpetua e se estende por toda a ilha. Este lado bom. Para mim chega. 

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