Refugiados: morrem sonhos, morrem espíritos jovens

O campo de refugiados de Moria espelha, de certa forma, o que o mundo impõe a esta realidade: a indiferença, a crueldade. Apelo aos corações, apelo às mentes. Acordemos. Não podemos ignorar.

Foto
Alkis Konstantinidis/Reuters

Lembro-me como o sol batia nas montanhas além-mar, criava aquelas cores escuras e claras que se entrelaçavam no relevo, atribuindo às árvores e a toda aquela paisagem um sentimento misterioso, algo esotérico, bonito. Lembro-me de caminhar pela marginal na ilha de Lesbos, cidade de Mitilene, e conseguir observar nitidamente que, da outra margem do mar Egeu, se encontrava aquela península anatoliana, aquela Turquia tão malfadada, de onde tantas e tantas pessoas fogem sacrificando uma vida, em busca de outra melhor. Recordo-me de observar a calmaria que se instalava, as poucas ondas que se formavam assemelhavam-se mais a um rio do que a um mar. Sentia assim essa distância que, apesar de ser tão pouca, criava um vazio tremendo no coração de tantas pessoas. Estava ali um desafio que punha à prova a sua resiliência, a sua vontade de sobreviver.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Lembro-me como o sol batia nas montanhas além-mar, criava aquelas cores escuras e claras que se entrelaçavam no relevo, atribuindo às árvores e a toda aquela paisagem um sentimento misterioso, algo esotérico, bonito. Lembro-me de caminhar pela marginal na ilha de Lesbos, cidade de Mitilene, e conseguir observar nitidamente que, da outra margem do mar Egeu, se encontrava aquela península anatoliana, aquela Turquia tão malfadada, de onde tantas e tantas pessoas fogem sacrificando uma vida, em busca de outra melhor. Recordo-me de observar a calmaria que se instalava, as poucas ondas que se formavam assemelhavam-se mais a um rio do que a um mar. Sentia assim essa distância que, apesar de ser tão pouca, criava um vazio tremendo no coração de tantas pessoas. Estava ali um desafio que punha à prova a sua resiliência, a sua vontade de sobreviver.

Nesta ilha, onde inúmeros refugiados chegam em busca de abrigo, há um sentimento agridoce que paira no ar. Sente-se o alívio e esperança daqueles que chegam, fugidos à desolação das suas casas, passado o teste que o mar lhes impôs, mas também se inspira o desespero daqueles que são consumidos por uma espera que parece eterna. Nesta bela ilha helénica, dois campos albergam migrantes, Kara Tepe e Moria, mas é este último que se desfolha numa fealdade que parece subsistir. Este campo de refugiados espelha, de certa forma, o que o mundo impõe a esta realidade: a indiferença, a crueldade. É um local que alberga cerca de 6000 pessoas, quando a sua capacidade apenas é de cerca de 3000. Não há condições que se dignem humanas: pessoas dormem em frágeis tendas que abalam ao sabor das condições atmosféricas; não há canalização; motins e recorrentes agressões põem em risco a vida de vários migrantes e voluntários; crianças órfãs vivem sozinhas ante os vários perigos que se lhe deparam todos os dias; o lixo amontoa-se por toda a área; filas intermináveis para conseguir uma necessidade que nos é essencial — comida; o frio é mais um factor que coloca a vida de todos aqueles no fio da navalha.

Numa dessas tardes, recebo uma notícia: o pânico instalou-se num bote sobrelotado quando vários refugiados que atravessavam o mar, ao verem um barco e assumindo que este fosse turco, os iria trazer de volta para a Turquia. Nesta histeria e pavor, uma criança morre esmagada diante da própria mãe. Momentos de seguida, esta tenta suicidar-se.

Presenciei um terceiro mundo que habita na Europa, vi uma selva que se alimenta do desespero e da angústia de inúmeras pessoas que deambulam em busca de um sentido, de uma vida digna. Estes olhos observaram o peso do coração e o olhar abatido pelos dias carregados da espera. Estas mãos sentiram a dor e as feridas, que os caminhos percorridos para alcançar a liberdade produziram nas mentes e nas almas sofridas. Vi infâncias interrompidas, famílias separadas, vidas descontinuadas, tudo porque há patente um consumo desenfreado e visceral da dor de que a Humanidade bebe, alimentado por uma conformação impassível, permitindo assim que guerras ocorram. É este nosso conforto ocioso quando, à porta do velho continente, morrem seres humanos, tombando ante a nossa indiferença.

O que é que nos distingue enquanto humanos, enquanto pessoas? É este pensamento, este dilema que divide os seres humanos e tantas civilizações, que cria guerras, que origina todo o desastre e maldade neste mundo. Não que alguma vez tivesse pensado o contrário, mas foi o tempo que passei na Grécia que me fez ver e entender que, apesar de diferentes, todas estas pessoas partilham connosco tudo aquilo que nos faz iguais, mas acima de tudo aquilo que nos faz humanos: o amor e a dor. Todo este medo irreflectido, semeado a troco de nada na sociedade ocidental apenas por eles serem diferentes (na pele, na religião, na forma de estar, na cultura) fomenta a desconfiança, a incompreensão e a dúvida quanto toda a situação, destes refugiados, destas pessoas. Quanto à necessidade imperiosa de recebê-los de braços abertos.

Apelo aos corações, apelo às mentes. Morrem sonhos, morrem espíritos jovens, morrem pessoas. Foi isto que nós, seres humanos, criámos. Acordemos. Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.