O médico em quem todos confiavam viverá preso até morrer
O responsável médico da equipa de ginástica feminina dos EUA durante décadas viverá preso até morrer depois de 156 mulheres terem denunciado os abusos sexuais que sofreram durante décadas.
Sim. Lawrence Gerard Nassar, de 54 anos, “nunca mais será um homem livre”, como fez questão de frisar a juíza Rosemarie Aquilina de Lansing, quando proferiu a “sentença de morte” — palavras dela — de Larry Nassar, o máximo responsável médico da federação de ginástica dos Estados Unidos nas últimas três décadas, o homem de confiança das ginastas de elite dos EUA, incluindo várias atletas olímpicas. Este também conceituado clínico da Universidade Estatal do Michigan confiou no seu estatuto, agindo como se fosse intocável, e abusou de, pelo menos 156 mulheres. Foi agora condenado a 175 anos de prisão.
O universo perverso de Larry Nassar começou a ruir quando as suas vítimas, a maior parte delas crianças ou adolescentes à data dos factos, cresceram e ganharam, primeiro consciência e depois coragem, para denunciar os abusos de que foram alvo. Foi o caso de Kyle Stephens, uma das primeiras raparigas a serem vítimas de abuso por parte de Nassar, quando tinha apenas seis anos. Pedindo à juíza para se dirigir directamente ao médico, disse: “Talvez só agora te deste conta de que as meninas não ficam meninas para sempre. Elas crescem e tornaram-se mulheres destemidas que regressaram para destruir o teu mundo”, disparou a mulher que agora tem 35 anos, olhando para o seu agressor.
Foi um telefonema seu para a polícia que levou à detenção de Nassar e a sua história demonstra como a perversão do clínico não se limitava a ginastas ou atletas em geral. Kyle Stephens não era nem uma coisa, nem outra. Nassar era amigo da sua família e quando, já com 12 anos, ela contou aos pais o que o médico lhe fazia, eles não acreditaram, insistindo para que lhe pedisse desculpa pelo que dizia.
Manipulador nato
Terça-feira da semana passada, quando começaram os depoimentos, estava previsto que comparecessem em tribunal 80 vítimas. Mas o dramatismo dos relatos levou a que várias outras mulheres ganhassem coragem para enfrentar Nassar. Acabaram por testemunhar quase o dobro das vítimas e o julgamento prolongou-se por mais três dias. Nas histórias que foram contando na sala de audiências, há enormes semelhanças. “Disse-me que me deitasse de barriga para baixo na marquesa e afastasse um pouco as pernas. Enfiou os seus dedos sem luvas nos meus genitais. A seguir perguntou-me como me estava a sentir e se o ‘tratamento especial’ estava a fazer com que me sentisse melhor da lesão”, detalhou, por exemplo, Kaylee Lorincz, a penúltima testemunha a depor, que tinha 12 anos na altura dos abusos.
O julgamento expôs o que durante décadas permaneceu confinado no interior dos consultórios onde Nassar se fazia valer do seu estatuto de médico da equipa olímpica de ginástica artística dos EUA, perante jovens ginastas cujo sonho era atingir o patamar daquelas que Nassar cuidava.
A manipulação psicológica e emocional era subtil e obedecia a diversas estratégias. As fotografias de várias estrelas do desporto norte-americano com que decorava as paredes dos locais em que dava consultas eram apenas uma delas, subliminar. Mais claras eram as promessas de que um dia poderiam ser como elas, como reais eram os pequenos presentes que trazia dos Jogos Olímpicos e lhes oferecia, alimentando-lhes o sonho.
Nassar fazia tudo para não ser apenas o médico que lhes tratava das lesões. Procurava ser um confidente e conselheiro, alguém em quem podiam confiar. Afinal de contas, ele era aquele que todos diziam ser o melhor e a sua experiência com atletas de topo não podia nem devia ser negligenciável.
Só isto explica que a lista de vítimas de Nassar seja tão extensa e heterogénea. A maior parte ginastas, sim, mas também bailarinas, remadoras, jogadoras de softball, de voleibol, uma nadadora... O homem que agora cumpre uma pena de 60 anos de prisão por crimes relacionados com pornografia infantil, tanto abusou sexualmente de meras estudantes adolescentes como de ginastas de nível mundial — Gabby Douglas, Aly Raisman ou McKayla Maroney, todas elas com medalhas de ouro olímpicas nos seus currículos, ou a campeoníssima Simone Biles, com quatro medalhas de ouro conquistadas nos últimos Jogos Olímpicos e que preferiu não comparecer em tribunal, embora tenha enviado uma declaração na qual dizia que também ela tinha sido vítima de abusos.
Era no mundo da ginástica que Larry Nassar gozava de maior prestígio. Médico da selecção olímpica norte-americana em quatro Jogos Olímpicos, ser tratada por ele era considerado “um privilégio”. Como contou em tribunal Carrie Hogan, antiga jogadora de softball da Universidade do Michigan, ele era “o melhor dos melhores”, sendo olhado como um “deus” no mundo da ginástica. Por isso, muitas das ginastas que foram vítimas de abusos sexuais por Nassar não questionaram os tratamentos a que ele as sujeitava e, mais tarde, se sentiram receosas em apresentar queixa contra o clínico.
Trinta anos de abusos
Não é claro quando é que Larry Nassar começou a prática dos abusos sexuais, embora os primeiros relatos deste tipo de práticas remontem a 1994. Em Agosto de 2016, o jornal Indianapolis Star publicou um artigo no qual relatava alegados abusos sexuais praticados por treinadores que trabalhavam com a federação de ginástica dos EUA. Foi o detonador da “bomba”. Mas, no mesmo artigo, referia-se também que os responsáveis federativos não denunciaram os alegados abusos às autoridades.
O silêncio da federação de ginástica dos EUA, do Comité Olímpico norte-americano e da Universidade do Michigan também tem sido alvo de crítica. Desde logo pelas vítimas de Nassar. Foram várias as que disseram que as queixas que fizeram a responsáveis daquelas instituições sobre o comportamento desapropriado de Nassar foram ignoradas.
Aly Raisman censurou a falta de apoio às vítimas por parte da federação de ginástica dos EUA — que considerou estar “podre por dentro” — e do Comité Olímpico dos EUA. Em 2014, a Universidade do Michigan chegou a ilibar Nassar depois de ter realizado uma investigação suscitada por uma queixa de uma aluna. Dois anos depois, Nassar estava preso.
“Esta sentença representará um ponto de viragem histórico sobre a forma como o nosso estado, o nosso país e a nossa cultura lida com os abusos sexuais”, declarou a magistrada do Ministério Público na sua última intervenção. E a verdade é que, para além da pena de prisão aplicada a Nassar, têm sido vários os dirigentes da federação de ginástica dos EUA e da Universidade do Michigan a apresentarem a demissão nos últimos dias.
Larry Nassar manteve-se quase mudo durante os dias em que foi escutando o rol de acusações e testemunhos arrepiantes das suas vítimas. O homem que durante anos recorreu à sua eloquência e à robustez da sua fama inabalável para convencer as suas doentes de que o que lhes fazia era para o seu bem, só foi capaz de dizer, numa breve declaração final, que tinha a noção de que aquilo que estava a sentir naquele momento “não era nada quando comparado à dor, trauma e danos emocionais” que originou. “Levarei as vossas palavras comigo até ao resto dos meus dias”, balbuciou, corpo encolhido, cabeça baixa, olhos semicerrados. Brooke Hyleck, uma das ginastas que acusaram Nassar, ripostou: “Estou feliz por ires passar o resto da tua vida na prisão. Aproveita o inferno.”
Notícia actualizada às 00h05 de 26.01.18: corrige e altera o título original da notícia (“Quando 175 anos de prisão parecem pouco”), que emitia um juízo de valor sobre a medida da pena que aqui não deve ter lugar.