Portugal em Roterdão sob o signo da intimidade
Tempo Comum de Susana Nobre e Djon África de Filipa Reis e João Miller Guerra são as duas longas portuguesas em estreia mundial nas secções competitivas do festival de Roterdão. Pretexto para falar com os realizadores sobre duas ficções muito ligadas à prática do documentário.
Será talvez um pormenor, curioso, sim. Mas, como pormenor, é significativo. Quando conversamos com Susana Nobre sobre Tempo Comum, que estará na secção Bright Future (“jovens realizadores” em tempo de primeira ficção) do Festival de Roterdão (primeira projecção pública sábado 27 às 16h30), a cineasta sublinha que não vai estar sozinha — “vão lá estar também a Filipa e o João, vai ser uma responsabilidade partilhada”. Dias depois, quando falamos com “a Filipa e o João” — Filipa Reis e João Miller Guerra, cujo Djon África é a única longa portuguesa na selecção oficial competitiva (Hivos Tiger, primeira projecção pública sexta 26 às 19h45) — Filipa fala da “forma inacreditável do cinema português internacionalmente”, e confessa-se extremamente curiosa por ver o filme de Susana.
Há uma ligação mais próxima entre os três nomes do que parece à primeira vista. Susana Nobre é uma das seis “cabecilhas” do colectivo de produção Terratreme, a par de Leonor Noivo, Luísa Homem, João Matos, Pedro Pinho e Tiago Hespanha. Ora, este Pedro Pinho, director de A Fábrica de Nada, é o mesmo Pedro Pinho que colabora quase desde o início com Filipa Reis e João Miller Guerra e é autor do guião original de Djon África, para além de ser co-produtor do filme (através da Terratreme). Mais ainda: tanto Tempo Comum como Djon África, que têm a sua estreia mundial em Roterdão este fim de semana, são “híbridos do real” — ficções que se alimentam das fronteiras do documentário, interpretadas por actores não-profissionais.
Um, Tempo Comum, mais modesto e minimal, convida o espectador para se “instalar” no espaço caseiro de uma mãe que acaba de dar à luz. Outro, Djon África, mais psicadélico e arrojado, acompanha a primeira viagem à “terra” de um jovem nascido em Portugal mas filho de cabo-verdianos e com um pai que nunca conheceu. (Os dois filmes cruzam-se com a dimensão igualmente híbrida das outras produções portuguesas em Roterdão, que este ano são 11, entre produções e co-produções — A Fábrica de Nada, sim, mas também a curta a concurso Miragem Meus Putos de Diogo Baldaia, vencedora do IndieLisboa em 2017; a Fátima de João Canijo, com a sua ficção a irromper da realidade, ou o documentário experimental de Teresa Villaverde sobre o cineasta italiano Tonino de Bernardi, O Termómetro de Galileu.) São, também, filmes que revelam uma curiosa aprendizagem criativa: filmes sobre gente que faz a transição para um novo momento da sua vida, feitos por gente que está também a viver um processo de transição.
No caso de Susana Nobre (n. 1974), Tempo Comum é a sua terceira longa-metragem mas a primeira assumida como ficção, após os documentários O Que Pode um Rosto (2003) e Vida Activa (2013). Sucede cronologicamente a Provas, Exorcismos (2015), curta estreada em Cannes onde ensaiou a ficção partindo precisamente das histórias verídicas recolhidas durante Vida Activa. O novo filme é, contudo, “muito dirigido e muito escrito”, explica Susana no escritório da Terratreme. “As ferramentas da ficção que experimentei aqui sem nunca ter experimentado antes foram a escrita, os diálogos. A seguir ao argumento inicial, houve um trabalho de terreno, as histórias foram trazidas pelos próprios actores e reescritas para uma duração cinematográfica. E isso eu nunca tinha feito.”
Filipa Reis (n. 1977) e João Miller Guerra (n. 1974), com uma dezena de títulos em carteira e duas longas “oficiais” (Li Ké Terra, 2010, e Orquestra Geração, 2011), partiram numa outra direcção criativa com Djon África. “Ficcionámos tudo e depois deixámos o documentário entrar no filme, ao contrário do que tínhamos feito nos nossos filmes anteriores, onde acabávamos por ficcionar para arranjar a estrutura do filme,” explica Filipa, frente a um abatanado no café da Cinemateca Portuguesa. “A nossa nota de intenções inicial era partir de uma coisa muito controlada em direcção ao desconhecido, e foi quando começámos a arriscar na montagem que percebemos que estava a funcionar. Procurámos uma coisa sensorial, que rebentasse um bocado a ficção.”
Em ambos os casos, há uma dimensão extremamente pessoal, quase “de longa data”, nos projectos. Tempo Comum nasceu da própria experiência de maternidade de Susana Nobre, mas foi uma ideia que já existia desde antes de Vida Activa e que ficou muito tempo na gaveta. “Quando estava em casa a dar de mamar, a tomar conta da bebé, as pessoas vinham ter comigo, ficavam ali um pouco envolvidas naquele espaço da casa, da intimidade, e falavam muito. Contavam histórias suas. Havia ali um lado de espaço confessional. E dei por mim a pensar que isso daria um filme, e era uma ideia que estava há tanto tempo tão cá para trás na minha cabeça que a decidi trazer para a frente, dar-lhe forma.”
Os seus “actores” são um casal na vida real — a jornalista, tradutora e académica Marta Lança e o fotógrafo Pedro Castanheira; o filme foi rodado no seu próprio apartamento e Clara, a bebé que acaba de nascer, é a sua filha. Esse peso da realidade e da intimidade das suas figuras, transpostas para uma ficção construída a partir da realidade, transmite-se a um filme onde reconhecemos algo de Chantal Akerman mas que Susana define ter como ponto de referência o Dez de Abbas Kiarostami (2002) — “é um filme despojado, no sentido de não haver tensão que se vá sedimentando, de não haver psicologia das personagens. O filme procura uma experiência. prazerosa do tempo, que tem a ver com aquilo que este período de facto representa: o ter tempo de ouvir, de estar, de fazer as coisas. Mais do que ser um filme sobre a maternidade, ou sobre o nascimento, o meu ponto de partida foi abrir o tempo para contar uma história ou para ouvir uma história.”
É também uma história que se conta em Djon África — a do primeiro “embate” com Cabo Verde para Miguel Moreira, filho de cabo-verdianos mas nascido em Portugal, e cuja procura de obter documentos de identificação legais propulsionava em 2010 Li Ké Terra, que venceu nesse ano o concurso nacional do Doclisboa. “Escrevemos o filme para um Miguel com 18, 19 anos e, com o tempo que o financiamento demorou, ele já tinha 25 quando rodámos,” diz Filipa. “Era outro Miguel, e estávamos sempre a tentar recuperar a inocência na representação dele que se tinha perdido naturalmente.” Djon África é a história da sua primeira viagem a Cabo Verde, ostensivamente à procura do pai, mas na verdade à procura de si mesmo. “Sabíamos que o impacto com Cabo Verde não ia ser exactamente aquilo de que o Miguel estava à espera”, explica João. “Havia a vontade dele conhecer uma realidade que lhe tinha sido transmitida pela avó, mas que não era sequer uma realidade que ainda exista, porque a avó não vai a Cabo Verde há 40 anos. Havia um Cabo Verde muito fantasiado naquela cabeça, e ele provavelmente nunca deixou de se sentir um turista porque todos o fizeram sentir assim. O que ele acaba por fazer é uma espécie de viagem interior.”
Nessa lógica, a dimensão onírica que o filme assume a partir de certa altura — que nos remete para filmes como o Zabriskie Point de Antonioni ou cineastas como Ben Rivers ou o brasileiro Gabriel Mascaro (aliás co-produtor do filme) — é atribuída por Filipa à experiência... do grogue cabo-verdiano. “É uma coisa intoxicada, um estado alterado. Mais do que o grogue, Cabo Verde tem muito esse efeito — não necessariamente de nos intoxicar, mas de nos fazer estar de uma maneira que já não conseguimos cá em Portugal.” João evoca as suas próprias experiências com o AR.CO mas também autores místicos como Robert Anton Wilson ou Daniel Quinn. Filipa fala de uma oportunidade única, irrepetível: “aquele primeiro sentimento de liberdade quando se é jovem, de podermos experimentar tudo, como quando se faz o primeiro inter-rail. Três meses em Cabo Verde com uma equipa de 12 ou 13 pessoas é a experiência de uma vida, que nunca mais se há-de repetir desta maneira.”
É por aí que voltamos ao início, ao encontro à esquina destes dois filmes vindos de experiências e percursos diferentes — “essa ideia de colectivo sempre foi uma das coisas que nos interessou nos trabalhos que fizemos sobretudo com o Pedro e a Luísa Homem, e casa muito bem com aquilo que é a Terratreme”, diz Filipa Reis. Susana Nobre fala de “confiança” — “o facto de pertencer a esta equipa dá-me imensa confiança de continuação, independentemente da questão dos festivais.” E para ambos os casos, há uma espécie de “peso acrescido” das expectativas, depois da recepção internacional da Fábrica de Nada — “é muito difícil um filme alcançar uma projecção ao nível da Fábrica”, diz Susana, Filipa fala da “atenção incrível” que a produção nacional tem recebido. Mas João Miller Guerra contrapõe uma certa descontracção. “Não sou muito de sentir essas responsabilidades. Acho que é preciso viver o momento pelo momento. E um festival que selecciona o Djon África entre apenas oito concorrentes é uma coisa bonita, do coração, independentemente das estratégias e do resultado que é esperado para o cinema português.”