O golpe, parte II
Lula dificilmente não saberia que o seu partido e o seu Governo estavam embrulhados numa tenebrosa operação de corrupção.
Estava escrito nas estrelas que o tribunal de segunda instância iria recusar a anulação da uma pena de prisão de nove anos e meio aplicada a Lula da Silva, ex-Presidente do Brasil. O que estava em causa no Tribunal Federal Regional da 4ª Região judicial do Brasil era um duelo entre magistrados e políticos no qual os magistrados tinham a palavra final.
Entre a tomada de posição pública de vários magistrados a favor da condenação, entre os quais o presidente do Tribunal que analisou o recurso, e as denúncias da esquerda em protesto contra o que dizem ser um “julgamento político”, o espaço para a aplicação da lei tinha-se reduzido drasticamente. Lula viu a sua condenação à prisão confirmada e, pior, agravada para 12 anos e um mês e, como consequência, a democracia brasileira estilhaçou-se ainda mais num conflito de legitimidades que envenena a vida pública, contamina a soberania popular e ameaça a transparência e os fundamentos do Estado de Direito.
Numa democracia, o princípio da igualdade de todos perante a lei é sagrado, o que obriga um ex-Presidente da República ou qualquer outro cidadão aos mesmos direitos, às mesmas responsabilidades e à mesma sujeição à alçada da lei.
Lula da Silva foi denunciado por supostamente ter beneficiado de subornos da construtora OAS na sequência de alegados favorecimentos em contratos da petrolífera estatal Petrobras. Feita a denúncia, a equipa da Operação Lava Jato tinha o dever de o investigar como investigou dezenas de empresários ou de políticos envolvidos nessa nódoa abjecta de corrupção que expôs com crueza a vilania das elites políticas e económicas do Brasil.
O problema é que, desde o início do inquérito, ficou sempre a ideia que para o juiz Sérgio Moro e para a sua equipa, uma condenação de Lula seria a abóbada do edifício que a justiça brasileira se empenhou a construir para limpar o país da corrupção. Condenar ex-ministros e grandes empresários deixando de fora o Presidente que mandava nos destinos do Brasil era uma falha que urgia colmatar. Condenar Lula seria pois o corolário lógico da limpeza em curso. Nessa estratégia, a Justiça não poupou nos meios, colando o segredo de justiça, revelando escutas a advogados de Lula, ou contribuindo para essa infame detenção numa madrugada na qual, ao atentar contra a dignidade de uma pessoa, os juízes ajudaram a destruir a dignidade da democracia brasileira.
Lula dificilmente não saberia que o seu partido e o seu Governo estavam embrulhados numa tenebrosa operação de corrupção. O caso do Mensalão tinha provado que o PT, eleito com base na promessa de uma revolução ética, se tinha contaminado com o ar espúrio de um sistema eleitoral e de uma elite política habituada aos subornos e à troca de votos por dinheiro público.
Para quem o viu como o poder regenerador de um regime e de um país minados pela gula oligárquica e pela cleptocracia dos poderosos, Lula foi uma terrível desilusão. Mas daqui a uma acusação e a uma condenação judicial vai ainda uma longa distância. Lula podia ser condenado desde que a investigação policial e judicial se munissem de um conjunto de provas consistentes. Não foi isso que aconteceu. Os factos apresentados pela acusação e dados como provados na primeira instância têm por base muitas ilações e convicções e muito poucas provas materiais. Nenhum tribunal europeu (ou, de acordo com opiniões de analistas americanos) dos Estados Unidos o condenaria com base nestes pressupostos.
Condenado por unanimidade, Lula vai poder recorrer e com sorte poderá candidatar-se à presidência do Brasil, numa corrida onde aparece nas sondagens destacado nas preferências dos eleitores. Mas, cedo ou tarde, a sua biografia política acabou. Para metade do Brasil, a justiça terá ganho a batalha à democracia. Para a outra metade, os desmandos do PT no poder foram finalmente punidos. Certo é que as elites conservadoras ganharam a batalha e o Nordeste pobre e atrasado perdeu o seu ídolo. Entre uns e outros, cavou-se um fosso no qual se enterram os consensos e a possibilidade de compromisso que são o nutriente clássico das democracias. O Brasil está no fio da navalha. Tudo pode acontecer.