Os jornalistas não são os homens do Presidente
É um filme de combate, que Spielberg montou em velocidade recorde, a contar com a agressividade que a actual Administração manifesta para com a imprensa. Mas o guerrilla filmmaking não é o forte de um cineasta tão “institucional” como Spielberg.
Estivesse hoje Marc Ferro a escrever o seu clássico Cinema e História e o novo filme de Spielberg serviria de exemplo típico e irrefutável para aquela ideia de que nos filmes os factos do passado são sempre um reflexo do presente. É que se tudo se passa no princípio dos anos 70 (e é, portanto, “história”), sem nenhuma referência expressa à contemporaneidade, o espectador está sempre a fazer o “transporte” para os nossos dias, ou pelo menos para os dias dos americanos: em The Post, onde se vê Nixon (e vê-se um punhado de vezes, uma silhueta resmungona filmada de longe, por trás de uma janela da Casa Branca), veja-se Trump (e vê-se sem se ver, paira no ar como uma neblina a definir o clima do filme). De certa forma, esse efeito de projecção é toda a razão de existir de The Post.
Conta a história da publicação dos chamados “papéis do Pentágono”, um longuíssimo relatório oficial (e “classificado”) sobre a intervenção americana no Vietname, que deixava escarrapachado que a guerra era, desde o princípio, mal conduzida e, sobretudo, sem convicção alguma, pois ninguém, nem militares nem políticos, acreditava verdadeiramente que fosse possível levar a melhor num tal conflito conduzido daquela forma. E portanto, todas as administrações, de Truman a Nixon, tinham mentido ao público americano. Os “papéis” tiveram um efeito bombástico quando começaram a ser publicados pelo NY Times, o que suscitou, da parte da Administração Nixon, o disparar do arsenal legal da praxe (providências cautelares e etc.) para impedir a continuação da sua publicação, pelo NYT e por outros jornais como o Washington Post. E é o Post o protagonista do filme de Spielberg, que acompanha a vontade do director do jornal (Tom Hanks) em publicar tudo o que lhe vier parar às mãos, independentemente de retaliações, e a hesitação da proprietária (Meryl Streep), dividida entre a missão jornalística e o receio de que essa missão ponha em causa a operação de consolidação económica do jornal que estava em curso, afastando os “banqueiros” e os outros investidores.
É um filme de combate, que Spielberg deve ter montado em velocidade recorde (afinal, mal passou um ano da tomada de posse de Trump), um filme de guerra, ou guerrilha, “preventiva”, a contar com a agressividade que a actual Administração manifesta para com a imprensa. Mas o guerrilla filmmaking não é o forte de um cineasta tão “institucional” como Spielberg: The Post é um filme “comprimido”, é certo, mas em que essa “compressão” resulta sobretudo numa espécie de demissão estilística, como um supertelefilme a correr sempre atrás do argumento sem ter tempo ou habilidade para lhe impor um ponto de ordem (certas soluções de encenação e montagem, as cenas que parecem apressadas, os cortes que não parecem fazer muito sentido, os planos gerais, a reconstituição singularmente frouxa do ambiente na redacção do jornal, a luz azulada standard, também sugerem a velocidade com que o filme terá sido feito).
O filme tem uma função pré-determinada e corre apenas pela ilustração dessa função: uma lembrança da importância da liberdade da imprensa, e mais ainda da importância da independência da imprensa face ao poder (neste caso tanto o político como o económico, se é que a distinção faz algum sentido). Tarefa cumprida com eficácia q.b., Spielberg termina o filme fazendo deste episódio uma “prequela” do Watergate, e do seu filme uma “prequela” dos Homens do Presidente de Pakula – embora a comparação seja espúria, porque o filme de Pakula, reflexivo e quase abstracto, está a milhas da urgência descritiva de The Post. Este está do lado certo (os jornalistas não são os “homens do Presidente”), e essa afirmação é praticamente tudo o que tem para dizer, e o que há para dizer.