“Uma ferramenta de resistência identitária” chamada Djidiu
Ao longo de um ano, vários afrodescendentes reuniram-se em Lisboa para dizer poesia e partilhar a experiência de ser negro. A associação Afrolis edita agora algumas dessas vozes em formato de livro. O lançamento é esta terça-feira, no Museu do Aljube.
Quando tudo isto começou, em Março de 2016, praticamente nenhum dos intervenientes tinha livros publicados. Chegavam às sessões e diziam poemas escritos de propósito para o evento, poemas que estavam na gaveta, poemas que estavam encravados.
Quase dois anos depois, eis que a primeira frase deste texto já não se aplica. O Djidiu – a Herança do Ouvido, uma espécie de clube de poetas negros que tinha como objectivo produzir conhecimento sobre a condição dos afrodescendentes em Lisboa, passou dessas sessões de poesia em nome próprio a um livro colectivo, Djidiu – Doze Formas e mais uma de se falar da experiência negra em Portugal, editado em papel pela VadiEscrevi.
Esta terça-feira, às 18h30, o ciclo que o Museu do Aljube, em Lisboa, dedica à leitura arranca precisamente com o lançamento do livro, com apresentação da historiadora Joacine Katar Moreira, da socióloga Cristina Roldão e da directora do Grupo de Teatro do Oprimido (GTO) de Lisboa Anabela Rodrigues.
Organizado pela Afrolis Associação Cultural, criada em 2014 pela jornalista Carla Fernandes, o Djidiu ("contador de histórias", em guineense) reuniu durante um ano um grupo de afrodescendentes que se encontravam às quarta-feiras no espaço do GTO para partilhar experiências, histórias, conhecimento. Depois, no último domingo de cada mês, apresentavam-se ao público em diferentes espaços de Lisboa com um tema específico na agenda.
Djidiu – Doze Formas e mais uma de se falar da experiência negra em Portugal reflecte sobre as várias maneiras de viver a afrodescendência e segue os temas propostos nas sessões: das micro e macro agressões à África positiva, da família ao amor, da representatividade à consciência negra.
“A experiência tinha de ficar documentada em livro, por escrito”, explica Carla Fernandes. "A primeira intenção da maior parte das actividades da Afrolis era criar hábitos de pronunciação. Daí a insistência na regularidade das actividades. Passar da oralidade para a escrita é a forma de garantir que as próximas gerações têm uma ferramenta de resistência identitária. Uma ferramenta que diga: ‘a tua existência vale a pena ser vivida, pensada, escrita, partilhada e preservada’”.
Folheando o livro, é a mancha gráfica dos poemas que espelha a singularidade da escrita de cada um. Mas uma coisa os autores Apolo De Carvalho, Carla Fernandes, Carla Lima, Carlos Graça, Cristina Carlos, Té Abipiquerst Té, Danilson Pires, luZGomes e Dário Sambo têm em comum: “Procurámos em nós as vozes mais profundas e escondidas para dizermos o que nos assombrava, e procurámos fazer com que essas vozes ecoassem em outros como nós."
Como escreve a socióloga Cristina Roldão no prefácio, “é frequente que só depois de escrito um livro saia à rua, mas este, antes de nascer, já o ia sendo”. E: “Os textos e o imaginário que Djidiu nos oferece foram andando de rascunho em rascunho, de boca em boca, de ouvido em ouvido nos encontros mensais Djidiu e no audioblogue Rádio Afrolis, até formarem o livro que o leitor segura agora nas mãos. Apesar de inédito no Portugal contemporâneo, e é preciso sublinhar essa originalidade, este livro inscreve-se numa herança de resistência cultural e política negra através da produção literária colectiva.”
E a seguir ao livro? Está previsto que este ano retomem a produção literária, revela Carla Fernandes. “Vamos procurar escrever contos e ter novas contribuições."
Por enquanto, Djidiu vai estar à venda nas livrarias Ler Devagar, Ferin, Tigre de Papel, Distopia e Pó dos Livros, em Lisboa. Há também uma modalidade de “livro suspenso”: pode-se comprar um livro e doá-lo a outro nas sessões da Afrolis ou através de transferência bancária. A requisição e a compra podem ser feitas por email e a partir de Fevereiro o livro passará a estar disponível num novo espaço: o Lugar de Fala, no número 10 da Calçada do Cascão, em Lisboa.