“Tinha de ser o mais estúpido do mundo para ser corrompido assim”
Juízes separam do julgamento da Operação Fizz processo de Manuel Vicente, mas não o enviam para Luanda, como ex-vice-presidente angolano exige. Procurador Orlando Figueira começou a defender-se de acusações de corrupção passiva.
À medida que os documentos da Operação Fizz são projectados na tela da sala de audiências do tribunal, Orlando Figueira vai apontando como cada um deles contraria as conclusões a que chegaram as suas ex-colegas do Ministério Público, quando o acusaram de ter recebido dinheiro do ex-vice-presidente de Angola para arquivar investigações que tinha em mãos sobre ele. Enganaram-se na pessoa que incriminaram, e com erros de palmatória, dispara.
Fala num tom professoral e com à-vontade, como se desse uma aula, ou não tivesse pertencido, durante quatro anos, à repartição do Ministério Público que combate a grande criminalidade económico-financeira, o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP). Vai refutando ponto a ponto o despacho de acusação, numa prelecção de que só se desvia quando envereda por uns àpartes. Quando se queixa de não ter ninguém com quem falar há mais de ano e meio senão as suas cadelas por estar fechado em casa, em prisão domiciliária. Quando resvala no auto-elogio e se classifica a si próprio como um visionário, que lhe perdoem a imodéstia. Quando o presidente do colectivo de juízes do Campus da Justiça de Lisboa lhe pergunta que profissão tem responde que tem como ofício ser preso, uma vez que deixou de ter dinheiro para pagar as quotas na Ordem dos Advogados para poder exercer.
O juiz Alfredo Costa adverte-o para não gozar com o tribunal, mas ele não se deixa impressionar e insiste: a sua profissão é mesmo essa, ser preso. “E trato das cadelas lá em casa”, acaba por conceder, a título de ocupação. Na realidade, não foi só com irracionais com que se entreteve nestes últimos tempos, e isso nota-se na sala de audiências, quando apresenta, horas a fio, a sua defesa, enquanto a sua advogada oficiosa se mantém em silêncio depois de proferir umas breves palavras quase de circunstância. Orlando Figueira, que já teve a representá-lo um dos mais reputados penalistas do país, passou a depender do Estado quer para este efeito quer para a sua sobrevivência. Como não pode exercer, por estar em prisão domiciliária, e lhe arrestaram os bens, a mesma justiça que o mantém cativo atribuiu-lhe uma pensão de alimentos de 1600 euros - bem menos do que os 3700 que tinha pedido ao tribunal.
Angola recusa notificar Manuel Vicente
Do homem que alegadamente o corrompeu com 760 mil euros, Manuel Vicente, nem sinal no tribunal: soube-se logo nos minutos iniciais deste primeiro dia de julgamento que as autoridades daquele país recusaram uma vez mais notificar o ex-vice-presidente angolano, entretanto eleito deputado. A carta em que deixam bem claro que não o irão fazer chegou ontem mesmo ao tribunal.
A forma como trata os magistrados portugueses por “excelências” não esconde o desagrado que grassa em Luanda perante as tentativas de Lisboa de fazer sentar Manuel Vicente no banco dos réus, implicando-o num processo que, segundo a missiva, “coloca em causa princípios fundamentais dos direitos internacional, constitucional e processual”.
“A constituição de Manuel Vicente como arguido rogada por vossa excelência não pode ser satisfeita pela República de Angola”, alega-se no documento, porque “o senhor engenheiro beneficia, ainda hoje”, de imunidade. O facto de ter sido vice-presidente que faz com que só possa ser julgado cinco anos após ter terminado o seu mandato, e apenas no Supremo Tribunal de Angola, é ali explicado.
A carta prossegue sugerindo a possibilidade de a justiça portuguesa enviar para Luanda a parte do processo que diz respeito a este arguido e garantindo que Angola tem “todas as condições de garantir a boa administração da justiça” neste caso.
Mas não foi isso que Alfredo Costa e os colegas decidiram ontem. Apesar dos insistentes pedidos dos advogados de Manuel Vicente nesse sentido, alguns dos quais ainda à espera dos resultados de recursos que seguiram para os tribunais superiores, e que poderão realmente vir a ditar a remessa desta parte do processo para Luanda, o que determinaram ontem foi que Manuel Vicente seja julgado em separado, um dia no futuro… mas em Lisboa, pela justiça portuguesa.
Razão para separar os processos? Precisamente o facto de Orlando Figueira ainda se encontrar em prisão domiciliária. Adiar o arranque do julgamento para fazer novas tentativas de notificação de Manuel Vicente ou para declarar a sua contumácia pelas autoridades - seguida da emissão de um mandado de detenção internacional para ser trazido à força para Portugal - significaria mais tempo de pulseira electrónica para o ex-procurador.
Acusa Carlos Silva e Proença de Carvalho
O julgamento começou de manhã e já ia longo quando Orlando Figueira começou a apontar baterias para aqueles que acusa de serem os verdadeiros culpados da desgraça e da ruína em que caiu, o banqueiro Carlos Silva e o advogado Daniel Proença de Carvalho. Gente que vê “escaparem sempre por entre os pingos da chuva”, enquanto ele, que se diz inocente de quase tudo à excepção de umas fugas aos impostos que o obrigaram a fazer, está ali a responder em tribunal como arguido.
Quando saiu do DCIAP, onde lidara com vários casos relacionados com Angola, Orlando Figueira vai trabalhar para o BCP, banco que conta com capitais da Sonangol, petrolífera à frente da qual tinha estado Manuel Vicente. E mesmo antes disso, no dia em que assina, ainda na qualidade de procurador, um despacho favorável aos interesses de Manuel Vicente, recebe 130 mil euros numa conta bancária que acabou de abrir no Banco Privado Atlântico, instituição liderada pelo angolano Carlos Silva. Luvas? Nem pensar, assegura o arguido: era um empréstimo que tinha pedido à instituição de crédito para pagar à ex-mulher. “Só tinha de lhe pagar 50 mil euros”, recorda-lhe o juiz. Orlando Figueira justifica-se com a necessidade de ficar com um pé-de-meia, por ter o filho a estudar.
“Tinha de ser a pessoa mais estúpida do mundo para ser corrompido desta forma”, observa. O que não impede Alfredo Costa de lhe voltar a manifestar a sua estranheza, desta vez perante o facto de ter despachado com acelerada rapidez uma das investigações de Manuel Vicente na altura em que era procurador, separando para o efeito o seu processo do de outros suspeitos. Dizia respeito à compra pelo angolano de um apartamento de luxo no Estoril, por 3,8 milhões de euros, e as suspeitas, que tinham sido lançadas pelo seu compatriota e activista anti-regime Rafael Marques falavam em branqueamento de capitais.
“Então eu ia fazer azedar as relações diplomáticas?"
Orlando Figueira puxa dos galões para perguntar ao juiz se alguma vez trabalhou no Ministério Público, se sabe como se investiga a criminalidade económico-financeira. Alega que aquele inquérito nunca iria chegar a lado nenhum, até porque Luanda nunca lhe facultaria dados que lhe permitissem aprofundá-lo. Daí que nem sequer os tenha pedido: “Então eu ia fazer azedar as relações diplomáticas entre os dois Estados?!”.
No processo em que agora responde por corrupção foi outra a opção dos seus antigos colegas do DCIAP, que incriminaram Manuel Vicente, e vê-se o resultado que deu: “Temos as relações com Angola por um fio, sem necessidade nenhuma”.
E se Carlos Silva foi quem, na sua versão dos acontecimentos, lhe lançou um isco ao convidá-lo para ir trabalhar para Angola com o único objectivo de o fazer largar as investigações que tinha em mãos no DCIAP, já o papel de Proença de Carvalho terá consistido em fazer-lhe chegar pagamentos do banqueiro angolano por uma suposta prestação de serviços jurídicos da sua parte. Parte desses alegados salários eram depositados numa conta em Andorra que o procurador abriu expressamente para o efeito, segundo diz para que o patrão pudesse fugir aos impostos – senão, não havia negócio. E foi também através de Proença que afirma ter-lhe sido pago o penalista que o defendeu até há pouco tempo, e que teve de trocar pela advogada oficiosa quando resolveu denunciar Carlos Silva.
O advogado, que tal como o banqueiro não foi constituído arguido, já o veio desmentir. Mas o Ministério Público não exclui a possibilidade de vir a abrir um novo inquérito sobre o papel de ambos neste caso - o que pode significar a sua passagem à condição de réus e já não dois mas três julgamentos diferentes sobre o mesmo tema, com tudo o que isso implica a nível de fragmentação da prova produzida em tribunal.
“Não conheço Manuel Vicente de lado nenhum”, diz e rediz Orlando Figueira, já o dia está a tornar-se noite. No final do dia percebe-se que está satisfeito com o seu desempenho em tribunal. Apesar das aleivosias que lamenta terem lançado contra ele.