Nostalgia por Obama torna livro de Pete Souza um blockbuster inesperado

Os americanos que estão de luto pelo fim da era Obama — e chocados com o início da era Trump — fazem há meses terapia colectiva no Instagram de Pete Souza, o fotógrafo oficial do ex-Presidente democrata. Agora, puseram o seu novo livro no topo de vendas.

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Pete Souza

Em tempos extraordinários, rótulos extraordinárias. Pete Souza, que foi o principal fotógrafo de Barack Obama durante oito anos na Casa Branca, tornou-se uma pílula antidepressiva para a América que vive em sobressalto com a nova realidade política.

Ao fim do primeiro ano de Donald Trump no poder, as saudades do ex-Presidente democrata tornaram aquilo que poderia ter sido apenas mais um livro de fotografia num inesperado blockbuster.

Lançado a 7 de Novembro, Obama: An Intimate Portrait (editado nos EUA pela Little, Brown, do Hachette Book Group, e no Reino Unido pela Allen Jane, da Penguin Books) já tinha vendido 200 mil exemplares quando ainda faltava uma semana para o Natal. Nessa altura, a Amazon ficou sem stock, criou uma “janela” no site para informar que só aceitaria novas encomendas quando o livro voltasse a “estar disponível” e criou listas de espera internacionais. Neste momento, no site da Little, ainda há um comunicado oficial dirigido aos leitores, que diz isto: “Estamos encantados com o entusiasmo pelo incrível livro de Pete Souza. Esta procura sem precedentes fez com que este tenha sido o livro do Hachette Book Group que mais vendeu num só dia na Amazon em toda a história. [...] Estamos a trabalhar para além do normal para conseguir pôr mais livros nas lojas o mais rapidamente possível.”

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Com as filhas, Sasha e Malia Official White House Photo by Pete Souza

James Warren, do Poynter Institute, um prestigiado centro norte-americano de reflexão e estudo sobre jornalismo, analisou o fenómeno editorial de Obama: An Intimate Portrait e atribuiu a Pete Souza uma faceta não-humana: com o seu novo livro, o fotojornalista tornou-se “um veículo de duas pernas para a nostalgia instantânea por Obama”.

Ninguém na Penguin quis comentar ao PÚBLICO as razões deste inesperado sucesso. Uma assessora de Londres disse que Pete Souza está “demasiado ocupado com a digressão nos Estados Unidos” e por isso não tem tempo para falar com os media.

Não é totalmente falso. A sua agenda pública impressiona. Nos últimos dias, Souza esgotou os bilhetes em Los Angeles para duas sessões de apresentação do livro, das 7h45 às 9h15, e à noite, na sala do histórico Wilshire Ebell Theatre; três dias depois esgotou o grande auditório do Teatro Ikeda, em Phoenix, Arizona; e esta terça-feira esteve em Boulder, Colorado, onde a procura ultrapassou de tal modo as expectativas que a sessão teve de ser mudada da Unity of Boulder Church para o grande auditório do teatro da cidade.

O próximo show — a palavra usada por alguns dos teatros para descrever estas palestras — é a 3 de Fevereiro, no Teatro Paramount de Austin, no Texas. Aqui, o “bilhete VIP” custa 76 dólares (costuma ser 60), mas dá direito a “conhecer e cumprimentar Pete Souza”, ter o seu autógrafo e tirar uma fotografia com o autor. Antes, Souza fez dezenas de sessões semelhantes em Washington, Nova Iorque, Seattle (onde também teve de ser transferido para o Moore Theatre para responder à procura elevada), Sacramento, São Francisco... e na Tate Modern, em Londres, onde os bilhetes também esgotaram.

A luta pela alma da América

Esta “reminiscência colectiva sobre a vida antes da era Trump”, como lhe chamou uma repórter do New York Times, revela uma evidência: há uma América que está de luto. Pete Souza, 62 anos, neto de açorianos que emigraram para os EUA no início do século XX — Obama chama-lhe “o açoriano” —, assumiu um protagonismo na vida pública americana pouco habitual para um fotógrafo que, como nota o ex-Presidente democrata no prefácio do livro, em oito anos “nunca se tornou parte da história que as suas fotografias contavam”.

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A caminho da festa oficial depois da tomada de posse, a 20 de Janeiro de 2009 Official White House Photo by Pete Souza

Talvez sem esperar a adesão maciça que acabou por mobilizar, Souza abriu uma conta nova de Instagram a 20 de Janeiro de 2017, o dia em que Trump tomou posse como Presidente, e começou a publicar fotografias de Obama com pequenas notas, subtis e irónicas, evidenciando o profundo contraste entre o actual e o ex-Presidente. Em pouco tempo, juntou um milhão de seguidores.

“Agora, sou um cidadão privado e tenho a liberdade de expressar as minhas opiniões”, disse numa entrevista à National Public Radio norte-americana. Percebe-se que Souza é um homem prudente. Ninguém o apanha a fazer críticas explícitas a Donald Trump (“tento ser subtil e respeitoso”), mas comove-se sempre que fala do tiroteio na escola primária de Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, em que morreram 20 crianças de seis e sete anos (e que Obama diz ter sido um dos dias mais difíceis dos oito anos na Casa Branca) e da necessidade de os EUA mudarem a legislação sobre o acesso a armas de fogo.

Inicialmente, Pete Souza queria seleccionar “100 ou 200 fotografias” das 1,9 milhões que tirou, mas acabou a publicar mais de 300. Muitas já são conhecidas — foram sendo dadas a jornais e agências e publicadas em todo o mundo. A visita ao príncipe bebé de roupão; a reunião inesperada na Sala Oval onde se vêem apenas sapatos de mulheres; um esboço de um discurso sobre o Obamacare todo anotado à mão; a conversa com uma Angela Merkel de braços muito abertos; dobrado em ângulo recto para que um rapaz negro de cinco anos confirmasse que o cabelo do Presidente era igual ao seu. Mas algumas são inéditas. “Para além de um olho excepcional, Pete tem um talento incrível para se tornar invisível”, escreve Obama no prefácio, no qual elogia a capacidade do fotógrafo para captar “o espírito, o ambiente e o significado” dos “momentos”.

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Em Londres, em Abril de 2016 Official White House Photo by Pete Souza
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Brincadeira na Sala Oval com Ella Harper Rhodes, filha de um assessor para Segurança Nacional Official White House Photo by Pete Souza

No fim da pequena nota, Obama diz que, “acima de tudo”, tem de agradecer a Pete Souza por uma coisa em particular: o facto de ele ter “fotografado os milhões de rostos que formam o carácter generoso, optimista, diversificado e orgulhoso da América”.

Esta visão sobre os EUA ajuda a explicar o sucesso editorial do livro, que fez Souza entrar no circuito dos oradores pop, com sessões pagas e esgotadas nos mesmos auditórios onde Joe Biden, Al Pacino, Neil deGrasse Tyson ou Philip Glass dão palestras. É uma visão diametralmente oposta à de Trump. “Há uma luta por duas identidades de Américas totalmente diferentes”, diz Tiago Moreira de Sá, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais — Universidade Nova de Lisboa e atento observador da realidade americana actual. “De um lado, uma América que defende um nacionalismo nativista, que tem uma concepção de uma América essencialmente branca, cristã e de pessoas de origem europeia, que desconfia das minorias e dos emigrantes, que está muito ligada ao comunitarismo (a comunidade mais próxima, que é parecida ou igual à sua) e que sente que os seus valores estão a ser roubados (religião, respeito, honra, trabalho duro, casamento)”, diz ao P2 o professor e autor de História das Relações Portugal-EUA (1776-2015) (Dom Quixote, 2016).

“E do outro lado há uma América bastante diferente, que defende o internacionalismo, que é uma conjugação de pessoas de várias origens e religiões, que não distingue protestantes de católicos ou judeus ou muçulmanos, que olha para os estrangeiros como uma vantagem para o país, que inclui brancos, afro-americanos, hispânicos e asiáticos, que não desconfia do estrangeiro, acredita que o país deve envolver-se no exterior, não acha que o mundo é hostil, defende políticas de discriminação positiva e as leis de acção afirmativa, acredita que é uma função do Estado proteger as minorias.”

Esta América foi derrotada e está órfã, conclui o investigador. “Não têm ninguém no Partido Democrata que os possa representar e olham para Obama como alguém que pode lutar pela alma desta América.”

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A ouvir Thelma McNair, cuja filha foi morta num atentado racista em Birmingham, em 1963 Official White House Photo by Pete Souza
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Durante um jogo de basquetebol da filha Sasha, em 2011 Official White House Photo by Pete Souza
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