Para que te queremos?
O calendário de estreias do início do ano é sempre ditado pelas apostas para o prémio maior de Hollywood. Mas é também um momento particular para uma cerimónia que se quer manter relevante. O que muda em 2018?
Um dos temas subjacentes à série televisiva de Peter Morgan sobre o reinado de Isabel II, The Crown, é o combate surdo entre a tradição e a inovação: entre manter a Coroa britânica como “farol seguro” no meio de um mundo conturbado ou trazê-la para os nossos tempos como “escudo protector”, num equilíbrio delicado destinado a mantê-la relevante. Se vamos aqui buscar The Crown, é porque esse tema reflecte o mesmo combate surdo dos Óscares de Hollywood. Nos nossos dias de progressiva consciencialização dos grandes problemas da sociedade contemporânea; de campanhas sociais como #OscarsSoWhite, #blacklivesmatter ou #MeToo; qual é a relevância de uma cerimónia totalmente centrada na indústria americana e cada vez mais prisioneira de uma lógica de entretenimento de prestígio? É possível uma cerimónia como esta ser mais do que um simples gesto simbólico, porta-estandarte de uma consciência bem-pensante?
Antes (mas não independentemente) disto: o arranque do ano de calendário cinematográfico é sempre, e já há décadas, determinado pelos Óscares e pelo posicionamento da todo-poderosa indústria americana. Para os filmes poderem ser elegíveis para os prémios que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas entrega todos os anos, a data-limite da estreia nos EUA é 31 de Dezembro. O resto do mundo recebe-os ao longo das primeiras semanas do ano, aproveitando o interesse gerado pelas listas de “melhores” do ano e por prémios como os Globos de Ouro. Este ano, os nomeados serão conhecidos terça-feira, dia 23, com a cerimónia a decorrer a 4 de Março. Todos os filmes na “rampa de lançamento” para as nomeações já têm há longas semanas data confirmada para Portugal. Jogo da Alta Roda, estreia na realização do argumentista de A Rede Social ou Jobs, Aaron Sorkin, com Jessica Chastain; A Hora Mais Negra, de Joe Wright, com Gary Oldman a “fazer-se” a Melhor Actor pelo seu retrato de Winston Churchill; ou Três Cartazes à Beira da Estrada, de Martin McDonagh, com Frances McDormand, Woody Harrelson e Sam Rockwell, já estão nas salas. Esta semana, juntam-se-lhe Mudbound — As Lamas do Mississippi de Dee Rees, e Chama-me pelo Teu Nome de Luca Guadagnino. A 25, chegará The Post, de Steven Spielberg, com Meryl Streep e Tom Hanks. Em Fevereiro, será a vez de A Forma da Água de Guillermo del Toro, Linha Fantasma de Paul Thomas Anderson, Todo o Dinheiro do Mundo de Ridley Scott, As Estrelas Não Morrem em Liverpool de Paul McGuigan, Pequena Grande Vida de Alexander Payne e Eu, Tonya de Craig Gillespie. Lady Bird de Greta Gerwig, é o único candidato forte que para já apenas estreará em Março, depois da cerimónia.
Estreias pós-Trump
No papel, não é uma lista particularmente diferente de anos anteriores, abrangendo toda a gama de filmes sobre temas “sérios” ou “de prestígio” que Hollywood apadrinha a pensar nos Óscares. O que muda, em 2018, é a percepção de uma cerimónia onde a qualidade parece sempre ficar condicionada ao gesto público. Ao longo dos últimos anos, os Óscares têm parecido perseguir desesperadamente a relevância: alargaram a lista dos nomeados para Melhor Filme para um máximo de dez para abrir espaço a uma maior “diversidade” (leia-se: êxitos de bilheteira reconhecidos pela crítica, como este ano Foge de Jordan Peele), mas acabando no geral por nomear mais do mesmo; atribuíram o prémio máximo de 2017 a Moonlight, de Barry Jenkins, produção independente sobre a entrada na idade adulta de um jovem negro gay.
Mas a eleição de Donald Trump para a presidência veio revelar a sociedade americana como muito mais dividida do que todos pensavam, e o cinema perguntou-se o que tinha acontecido, quais as suas responsabilidades. 2018, como o primeiro ano de filmes estreados no momento Trump, é um ano onde os filmes vão ser ainda mais escrutinados pela relevância que possam ter para o momento (e The Post, sobre a luta entre a administração Nixon e o jornal Washington Post sobre a publicação dos Pentagon Papers, é o melhor exemplo disso). E a relevância não é apenas social, política, económica: é também existencial, neste ano em que se começaram a ver os resultados das primeiras incursões dos serviços de streaming na produção de longas — (dos candidatos actualmente badalados, é significativo que Mudbound, vindo da Netflix, tenha vindo a perder gás nas bolsas de apostas).
Nada de ilusões: os Óscares vão continuar a ser uma máquina promocional para filmes que correspondem a uma ideia de “prestígio” e de “qualidade” defendida pelos estúdios, e para exibidores e distribuidores preencherem um período do ano onde tradicionalmente há menos mega-produções para encher salas. Não quer dizer que os filmes sejam maus, ou que as motivações de quem os fez sejam cínicas (é até mais normal que os nomeados manifestem sinceridade em excesso). Entre os prognósticos, Três Cartazes à Beira da Estrada, Chama-me pelo Teu Nome ou Linha Fantasma são suficientemente idiossincráticos para serem mais do que apenas “os suspeitos do costume”. E a ideia de nomeações para gente de que gostamos como Annette Bening, Michelle Williams, Greta Gerwig, Saoirse Ronan ou Sally Hawkins não deixa de ser reconfortante. Mas isso não nos deve distrair do essencial: não se esperem respostas dos Óscares. Não é para isso que servem.