Isto não é samba-rock
Apaixonados por Cartola, samba e choro velhos, foram ao Brasil apostados em reinventar-se. Vem aí álbum com sabor paulista.
Sonhavam com o Brasil, “conhecer” o Brasil, “tocar” no Brasil. Encantaram-se, ainda em Portugal, por gente como Cartola, Paulinho da Viola, Raul Seixas e Tim Maia. Andavam com desejos de Brasil e deixaram esses desejos transbordar para as canções — em que medida é o que vamos saber quando ouvirmos o sucessor de Têm os Dias Contados, que deverá ser lançado no segundo semestre deste ano.
A estas vontades juntou-se a oportunidade oferecida pela Red Bull de gravar num dos vários estúdios que tem espalhados pelo mundo. Escolheram São Paulo, onde estiveram em Dezembro de 2017. Foi “excitante” sair da “zona de conforto”, diz o baixista Domingos Coimbra, numa conversa da banda com o Ípsilon num café de Lisboa. Não querem aninhar-se no estatuto que consolidaram com Têm os Dias Contados (canções imaculadas, com regalos orquestrais, pop-rock versado na sua história). Mais à frente na entrevista, dizemos a palavra “consagração” — foi isso que vimos, por exemplo, em Dezembro de 2016, no Coliseu, em Lisboa — e vemo-los fugir dela. “Mais do que essas considerações, foram anos inacreditáveis para nós, em que tivemos imenso trabalho, trabalho que gostámos de fazer, concertos que gostámos imenso de dar”, resume.
O trabalho de preparação do quarto álbum dos Capitão Fausto, ainda sem título, aconteceu em Lisboa, onde se tornaram músicos profissionais. “A ideia de ir para o Brasil também nos abre portas criativas, deu-nos mais oportunidades. Quando estávamos a fazer as músicas, tínhamos um leque maior, começámos a pensar de forma diferente”, conta Salvador Seabra (bateria).
Nessa influência brasileira que procuravam, deixaram-se “contaminar por alguns músicos”, elabora Manuel Palha. O guitarrista já conhecia dos tempos de faculdade Eduardo Pereira, habituado a integrar rodas de samba e outros agrupamentos que mantêm viva a tradição musical brasileira — é um dos músicos paulistas que ouviremos no quarto disco dos Capitão Fausto. Num casamento, Manuel conheceu a banda de Humberto Araújo, com currículo vasto na música do Brasil. Araújo sugeriu-lhe músicos brasileiros e explicou-lhe a ciência que há na escolha de um pandeiro de nylon.
Os Capitão Fausto não queriam “imitar”, mas antes “captar” a ideia de Brasil, com o “modo europeu” de fazer as coisas, sem “perverter” a linguagem que aprimoraram nos três discos anteriores. Apaixonaram-se por rodas de choro (a primeira música urbana tipicamente brasileira, nascida no século XIX; “o primeiro jazz”, diz o vocalista Tomás Wallenstein); pela “parte tradicional e original do samba”; e por gente como Cartola, de quem, por brincadeira, gravaram versões em estúdio disponíveis no site da Red Bull Radio (ouça-se o clássico O mundo é um moinho, melancólico na voz de Cartola, criado na favela, melancólico na voz de Tomás, crescido nos confortos de Lisboa: “Ouça-me bem, amor/ Preste atenção, o mundo é um moinho/ Vai triturar seus sonhos, tão mesquinho/ Vai reduzir as ilusões a pó”).
Niemeyer e orquestra
Chegaram a São Paulo com o “trabalho de casa” feito e disco pronto a gravar. Os 11 dias de estúdio foram produtivos. “Não sei se pela [boa] onda ou por termos trabalhado bem em Lisboa antes, fizemos as coisas com uma velocidade de que não estávamos à espera. Conseguimos chegar ao grau de perfeccionismo que queremos mais rapidamente do que estávamos à espera”, reflecte Manuel. Instalados no “icónico” Edifício Copan, arranha-céus desenhado por Oscar Niemeyer, tiveram tempo para conhecer a cidade. “Isso tem influência no teu trabalho, nem que seja pelo calor que está a toda a hora”, aponta Salvador.
O álbum, que vai ser acabado em Portugal, terá convidados ainda secretos e alguns já revelados, como os músicos de São Paulo Eduardo Pereira (o amigo de Manuel Palha, especialista em cordas, do violão ao cavaquinho), Gabriel Peregrino (percussão) e Geremias Júnior (sopros). “Foi uma sorte poder tocar com três músicos tão talentosos em tantos instrumentos. Foi como se tivéssemos uma orquestra, mas eram [só] três pessoas que íamos multiplicando por pistas”, diz Francisco Ferreira, homem dos teclados.
“Não vai ser” um disco de samba-rock, esclarece Domingos. “Outra das coisas que correu bem no disco anterior é esse lado de [fazer] arranjos com instrumentos que não os nossos. Podemos trazê-lo com outros músicos. Isso dá uma abertura às canções que é refrescante. Antes não fazíamos tanto, no Pesar o Sol e no Gazela. Neste último, seja através das rodas de choro ou de outros músicos que haveremos de gravar cá, essa linha mantém-se.”
Os músicos brasileiros “vão ocupar o mesmo espaço que os arranjos orquestrais ocuparam” em Têm os Dias Contados, explica Francisco. “Está presente, nota-se, mas não é [uma presença] invasiva e não está a domar e a liderar as canções — quem está a domar e a liderar somos nós os cinco, nós é que compomos de acordo com a nossa história musical. Não é samba-rock, não há uma parte em que o cavaquinho fique só, a ‘rockar’. Eles estão atrás do nosso comboio.”