E os espanhóis mergulham na arte portuguesa

O Museu Rainha Sofia, em Madrid, quer mostrar ao público espanhol a arte que se fez em Portugal no começo do século XX. E foi buscar um poeta para servir de cicerone. Exposição abre em Fevereiro.

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Pessoa em 1929 numa loja da Abel Pereira da Fonseca na Baixa DR

Subia o Chiado ou passeava pela Baixa impecável, de fato e chapéu de feltro, umas vezes de gravata outras de laço, sobretudo vestido ou no braço, e quase sempre a fumar. A imagem fica completa com um bigode pequeno, uns óculos redondos ou ovais e um rosto sereno, mas algo triste. Não parece haver sorriso algum nas poucas fotos de Fernando Pessoa (1888-1935) nem nos retratos que dele fazem artistas como Alberto Cutileiro e Almada Negreiros.

Era assim, discreto, que caminhava entre os escritórios onde trabalhava, redigindo cartas comerciais em inglês, e as tertúlias do Café Martinho da Arcada, no Terreiro do Paço, onde se sentava à mesa com os escritores Raul Leal ou António Botto. É assim que aparece na célebre fotografia em que toma um copo de vinho numa loja da Abel Pereira da Fonseca e que mais tarde haveria de enviar a Ofélia Queirós, reatando o namoro, com a dedicatória bem-humorada “Fernando Pessoa em flagrante delitro”.

É pela figura do poeta que começa a exposição que inaugura o calendário 2018 no Museu Rainha Sofia, em Madrid - Pessoa. Toda a arte é uma forma de literatura (7 de Fevereiro a 7 de Maio). João Fernandes, o curador português que é também subdirector da casa, divide com Ana Ara o comissariado desta mostra que parte do autor da Mensagem, grande protagonista das vanguardas, para chegar à arte que se fazia em Portugal nas primeiras décadas do século XX.

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São poucas as fotografias de Fernando Pessoa que chegaram até nós. A maioria, de que esta ao lado faz parte, mostra o poeta nas ruas da Baixa lisboeta DR

“Ele é bastante lido em Espanha, mas as pessoas conhecem mal o seu percurso de vida. Foi por isso que decidimos começar esta exposição por um núcleo que cruza o plano biográfico com o heteronímio, e daí passar para as artes visuais das vanguardas em Portugal, completamente desconhecidas aqui”, diz João Fernandes, lembrando que, apesar da proximidade geográfica, a produção artística nacional só ali começa a ser divulgada a partir dos anos 80, com a Arco.

A maioria dos espanhóis não sabe quem foi Amadeo de Souza-Cardoso nem José Sobral de Almada Negreiros (que viveu e trabalhou em Madrid), não teve acesso à obra de Eduardo Viana nem de Guilherme de Santa Rita, não tem noção de que, durante a guerra, o casal Sonia e Robert Delaunay se refugiou no norte do país e fez amigos, criando com eles uma corporativa de artistas que incluída dois poetas (Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars), que sonhou expor em várias cidades europeias (projecto que ficou por cumprir) e que lia Arthur Rimbaud compulsivamente. 

“O Pessoa funciona aqui como um mecanismo de atracção que abre a porta para um universo novo para os espanhóis, que têm neste período, que termina na exposição com a chamada geração da Presença [uma das mais importantes revistas literárias portuguesas, publicada entre 1927 e 1940], artistas que são referências absolutas na arte do século XX, como Picasso”, diz João Fernandes.

A exposição do Rainha Sofia contará com 160 obras de 20 artistas, provenientes de várias instituições públicas e privadas, como a Biblioteca Nacional de Portugal, o Museu do Chiado e a Fundação Cupertino de Miranda. A Gulbenkian, que a co-produz, é o maior dos emprestadores, cedendo mais de 56 obras. Entre elas está o célebre retrato do poeta feito por Almada em 1964, segunda versão do que pintara dez anos antes para o restaurante Irmãos Unidos, ponto de encontro do grupo da revista Orpheu, em que ambos estavam envolvidos; as maravilhosas pinturas de Amadeo A Chalupa (c. 1914-15) ou Os Galgos (1811); O Meu Retrato (1928), de Mário Eloy; K4 Quadrado Azul (c. 1916), de Viana; Tarde de Festa (1925), de Júlio dos Reis Pereira; e inúmeros desenhos de Jorge Barradas e Adriano de Sousa Lopes.

Estas obras, associadas a vários documentos – fotografias, cartas e outros manuscritos, horóscopos que Pessoa faz para si e para os seus heterónimos, revistas de arte e literatura, como Orpheu, A Águia e a Presença – estarão divididas por núcleos dedicados aos “ismos” que, via Pessoa, marcaram a modernidade portuguesa, uns originais, outros por reapropriação ou oposição frontal. Estão lá o paulismo, o interseccionismo, o sensacionismo, o futurismo… “Nesta exposição o que mais nos interessa trabalhar é o próprio conceito de vanguarda e a forma como Pessoa, que não se interessa propriamente pelas artes visuais mas que muito escreve sobre elas, se relaciona com a modernidade.”

Explica João Fernandes que o poeta, que chegava às artes sempre através da literatura porque só ela lhe interessava, se distancia do cubismo sem deixar de se relacionar com ele, “reinterpretando” algumas das suas propostas:  “Pessoa compreende que é preciso ser contemporâneo e o modernismo é essa contemporaneidade. Ele sabe que as vanguardas estão a acontecer, mas cria os seus próprios modelos, o que reflecte uma atitude crítica muito interessante.”

Pessoa procura a diferença, acrescenta o comissário, a partir de um contexto que ele sabe ser periférico e adoptando algo que é comum às artes visuais portuguesas da época – uma forma muito particular de cruzar o popular e o erudito. “Pessoa trabalha a redondilha como trabalha o verso clássico. Nada disto se exclui na sua obra. Amadeo e Viana, por exemplo, também vão buscar o artesanato para o reinventarem.”

O poeta sabe, conclui, que há uma simultaneidade da escrita e das artes visuais – a Orpheu é um dos palcos maiores dessa convivência -, e insiste na especificidade da cultura portuguesa, uma especificidade que é geográfica, mas também histórica: “Por isso ele cria essa noção de Quinto Império para a poesia e para a arte. Um império que deixou de o ser.”

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