Pronta para o seu close-up
2017 correu-lhe bem em França, 2018 pode correr-lhe bem em Portugal: uma trilogia no D. Maria II e uma relação com o São Luiz encaixam Lisboa na agenda da nova favorita dos programadores europeus – e do seu vaivém entre a vida, o teatro e o cinema.
Talvez haja maneiras menos suicidas de entrar para o repertório da Comédie-Française do que a atirar drones, biscoitos, Céline Dion e a crise dos refugiados (não exactamente por esta ordem) para cima de um tesouro nacional que em quase 80 anos nunca ninguém quis profanar – e é possível que, antes de se tornar a primeira brasileira a ter o seu nome na fachada da mítica Sala Richelieu, Christiane Jatahy (Rio de Janeiro, 1968) até tenha considerado seriamente algumas delas. Não deve ter sido por muito tempo: há mais de dez anos que esta “nem encenadora nem cineasta” (tem sido as duas coisas em simultâneo) anda a dançar em cima do vulcão, como as personagens de A Regra do Jogo, o filme de Jean Renoir que quis adaptar para a sua estreia na mais canónica das instituições do teatro francês. A regra do seu jogo, jogo perigoso como dizia à Télérama meses antes, tem sido armadilhar cada nova criação para se manter viva, e para não deixar morrer os espectadores: “Se o criador não corre nenhum risco, não tem como atingir o espectador. É preciso que haja acidentes, imprevistos; se não aborrecemo-nos, anestesiamo-nos. E começamos a aceitar tudo como se tudo fosse normal.”
Medir-se com Jean Renoir – tal como se medira antes com Strindberg, Tchékhov ou Shakespeare – não só não a matou como a tornou mais forte. Em França, acabou o ano festejada pelos críticos de teatro do Le Monde como um dos melhores acontecimentos de 2017 e entrou em 2018 como artista associada do Odéon – Théâtre de l’Europe, onde a 16 de Abril estreia Ítaca, a primeira das três visitas à Odisseia que ali fará (com furor, antecipa a imprensa francesa) até 2020. Em Portugal, tudo é mais silencioso: há meses que se segreda que será a próxima Artista na Cidade, sucedendo a Faustin Linyekula, Tim Etchells e Anne Teresa de Keersmaeker na quarta edição deste programa promovido pela Câmara de Lisboa (informação que, apesar de insistentes tentativas, o Ípsilon não conseguiu confirmar oficialmente junto da EGEAC até ao fecho desta edição), mas por enquanto apenas dois teatros assumiram publicamente estar numa relação com Christiane Jatahy: de 4 a 20 de Maio, o D. Maria II acolhe a trilogia composta por Julia (a partir de Menina Júlia, de Strindberg), E se elas fossem para Moscovo? (a partir de As Três Irmãs, de Tchékhov) e A floresta que anda (a partir de Macbeth, de Shakespeare), aproximação a algumas das personagens femininas mais icónicas da história do teatro; de 7 a 11 de Junho, fechando o Alkantara Festival, o São Luiz, que também é coprodutor do espectáculo, apresenta a estreia nacional de Ítaca.
Mesmo que reduzida apenas às apresentações já anunciadas, e que não venha a crescer para o formato imersivo da bienal Artista na Cidade, será uma oportunidade preciosa para aprofundar o contacto com uma criadora cuja obra em incessante vaivém entre a vida, o teatro e o cinema (tem como autores de cabeceira John Cassavetes, porque os seus actores parecem sempre prontos a sair do ecrã, e Pina Bausch, por causa da “explosão de vida que surge da fricção entre dança e teatro”) parece totalmente pronta para o seu close-up. Encontrá-la-emos, aliás, num momento de viragem: concluída a trilogia composta entre 2010 e 2016 que o D. Maria apresentará (e de que já pudéramos ver, em 2013 no Teatro Nacional São João, a aproximação a Strindberg pelo viés da discriminação racial que é constitutiva do Brasil, e em 2016, abrindo o Alkantara no São Luiz, a complexa remontagem de As Três Irmãs que se desdobrava em filme e peça de teatro), ciclo em que radicalizou uma pesquisa teatral determinada já desde as primeiras experiências com a sua Companhia Vértice, a abolir as fronteiras entre a vida e a representação, a realidade e a ficção, o actor e a personagem, o palco e o público, Christiane Jatahy recua agora à Antiguidade grega para sondar os alicerces da civilização europeia. Fá-lo-á, como sempre, pondo em causa os alicerces da própria forma teatral – não só por confiar, enquanto artista, no efeito multiplicador da contaminação do teatro pelo cinema e pelas outras artes (cresceu a querer ser cineasta, acabou a formar-se, depois de estudos de jornalismo e filosofia, como actriz e como encenadora), como por reivindicar, enquanto cidadã, a reinscrição do palco como território natural da política.
Como encenadora – ou como cineasta, já que em muitos espectáculos o seu lugar é na régie, editando em tempo real o que se passa no palco para dar a ver o teatro como cinema –, cabe-lhe sobretudo abrir o processo à participação activa daqueles com quem o partilha, espectadores incluídos. Em A floresta que anda, têm de decidir se se sentam na plateia ou se caminham até ao bar, se metem conversa com a actriz ou se ficam no seu canto a assistir; em Ítaca, já se sabe, poderão oscilar entre o ponto de vista de Ulisses, ou seja daquele que parte, e o ponto de vista de Penélope, ou seja daquela que fica. “Eu acho que isso é bastante político, porque não é hierárquico. Não existe uma verdade absoluta, não existe uma ideia de que isso ou aquilo contém o protagonismo (…) para onde deve voltar-se a atenção do espectador”, explicava em 2014 à revista brasileira Sala Preta.
Nos últimos anos, tem sido esse o seu trabalho: manter o teatro próximo do abismo (“tanto para quem faz como para quem vê”), porque só no abismo podem “acontecer” coisas. “É como se eu construísse uma teia para poder furar essa teia e a gente cair junto.” Ela está pronta; estaremos nós?