A esclerose múltipla “já não é um monstro tão grande”
Grupo de estudos está a trabalhar numa proposta de registo nacional de doentes. Há falta de dados concretos. Mas o desenvolvimento de fármacos vislumbra algum optimismo: “Cada vez menos ter esclerose múltipla significa uma cadeira de rodas." Em cinco anos o número de fármacos para travar o desenvolvimento da doença quase duplicou.
— Ah! Não tinha percebido que tinha essa doença.
— Pois, não se vê.
A surpresa é frequente desde que o diagnóstico chegou há cinco anos, 29 de Julho. Tinha esclerose múltipla. Para Telma Teles, aos 30 anos, só havia uma esclerose, a esclerose lateral amiotrófica. “Pensei que o mundo ia acabar." Teve terror de uma doença que não conhecia. “E ainda hoje o desconhecimento e a confusão são enormes.” Habituou-se à reacção das pessoas. Ri-se umas vezes e explica “sim, pode saltar e agora até consegue correr”. Noutras, o estigma, a que se associou a falta de informação, impedem-na de sair do desemprego.
A esclerose múltipla é uma doença crónica e auto-imune, com efeitos nas capacidades físicas e neurológicas dos doentes. Afecta entre seis a oito mil pessoas em Portugal. Sobretudo os jovens, em particular as mulheres numa proporção de dois para um em relação aos homens. O surto-remissão, a forma inflamatória da doença, atinge a larga maioria. São doentes como Telma que têm episódios de disfunção neurológica, chamados de surtos, dos quais podem recuperar total ou parcialmente.
Para estes casos a esclerose múltipla “já não é um monstro tão grande”. Em cinco anos o número de fármacos disponíveis em Portugal para travar o desenvolvimento da doença quase duplicou. Em 2012, havia seis. No final de 2017, onze estavam à disposição dos neurologistas. “Já é possível escolher o que melhor se adapta ao doente, em termos de resultados, e aquele com o qual ele se sente melhor”, diz João Cerqueira, neurologista no Hospital de Braga e presidente do Grupo de Estudos de Esclerose Múltipla (GEEM).
Há mais de um ano que procura trabalho
Telma, alentejana, a viver em Olhão, está “bem, sem dores, activa”. Há mais de um ano que procura trabalho. Quando terminou o contrato como comercial numa empresa de telecomunicações, não o quis renovar, porque a pressão e o stress daquela função mexiam "muito, muito com a doença” — problemas com a memória recente e dificuldade de concentração são alguns dos sintomas possíveis. Sentiu mais ainda o peso da doença nas entrevistas de emprego recentes. “Nunca quis esconder que tenho esclerose múltipla, mas sei que isso me elimina da selecção." Não é caso único, menos de metade dos doentes mantém-se no activo.
Aos 34 anos, depois de dois surtos, sente-se uma "pessoa tão válida como as outras". "Posso é cansar-me um pouco mais". O neurologista Carlos Capela apoia: “Cada vez menos ter esclerose múltipla significa uma cadeira de rodas. É possível controlar a doença, cada vez até mais tarde, permitindo uma maior qualidade de vida."
A questão do trabalho não é simples, lembra Susana Protásio, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM), uma vez que a maioria dos doentes que a associação acompanha não o faz devido aos efeitos da doença. Mais de um quinto já teve que mudar de emprego e cerca de 10% pediu redução de horas, mostra um inquérito feito a 535 doentes, no âmbito de um estudo realizado em 2016 e coordenado por Maria José Sá, neurologista do Hospital de São João, no Porto.
“É preciso repensar o trabalho e o sistema de apoio”, reclama Protásio. A SPEM quis dar o exemplo ao criar uma linha de apoio onde trabalham pessoas com esclerose múltipla. Os turnos são de quatro horas, “para atenuar o efeito da fadiga”, e o “ambiente é adaptado às capacidades de cada um”. Também ao nível dos cuidadores, a dirigente da associação pede uma legislação que ponha fim ao “vazio legal”. Quase dois quintos dos doentes precisam de ajuda de um amigo ou familiar – uma parte teve que mudar de trabalho ou reduzir horas para o fazer. Este é um dos argumentos da SPEM e do GEEM para reclamarem um registo nacional de doentes.
Ter "uma amiga para a vida"
O diagnóstico de Telma chegou um mês depois do segundo surto. O primeiro fora confundido como efeitos pós-parto. O segundo começara a ser tratado como uma tendinite. “É fácil de confundir”, afinal. “Cansaço e fadiga, quem não tem? E dores de cabeça?” Das primeiras vezes que foi ao médico, Telma Teles foi para casa com o diagnóstico de depressão.
Hoje, os neurologistas notam uma maior consciencialização médica. O que não impede que os primeiros sinais “ainda sejam subestimados”, observa Carlos Capela, o que atrasa o diagnóstico de "uma doença onde a terapêutica precoce pode travar uma evolução mais rápida". O doente demora a chegar a um neurologista e à consequente ressonância magnética que identifica as lesões na substância branca do cérebro e da espinal medula.
Luís Loureiro também “tem uma amiga para a vida”, diagnosticada por volta dos 25 anos. Aos 52, vê que a sintomatologia estava lá antes disso. “Fui um rapaz do desporto durante sete anos até me aparecer esta bicha”. Jogava rugby federado – já tinha sido ginasta e basquetebolista – e a doença tornou-o incompatível com aquele tipo de esforço. Em doentes com esclerose múltipla o corpo não identifica determinadas alterações, considerando-as um ataque ao qual tem que ripostar. Isso acontece, por exemplo, com o calor e reacções intensas e repentinas. "Tornou-me numa espécie de lagarto”, brinca.
A fadiga e o cansaço são os sintomas mais comuns e difíceis de atenuar. O descanso é imperativo. “O corpo baralha tudo e pode provocar um surto”, simplifica Luís. Durante 15 anos teve dois surtos, e consequente internamento, por ano.
“Mãe, é hoje que vais comprar a cadeira de rodas?”
A filha de Telma tinha dois anos quando lhe perguntou, enquanto esperavam na farmácia, se seria aquele o dia em que ia comprar a cadeira de rodas. “Foi aí que comecei a exigir mais de mim. Quero que ela seja lutadora e não desista da vida, porque eu não desisti da minha. A doença não me pode acobardar.” Foi o seu ponto de viragem.
Em Janeiro do ano passado, começou a andar a pé. Fazia cinco minutos de dois em dois dias e sentia que tinha acabado uma prova de triatlo. Insistiu e começou a correr. Em Setembro, entrou no ginásio. Primeiro as aulas leves. Agora pratica musculação e boxe. “Podemos levar um bocadinho mais de tempo, mas a gente consegue.”
Já Luís, engenheiro civil, viu a sua empresa abrir insolvência e a vida familiar dar uma volta, no mesmo ano. Por essa altura já tinha sinais diários da doença: as falhas na perna e na mão direita. Acontece-lhe cair, não conseguir interpretar a sua letra.
“Costumo dizer que caio mais das escadas acima, do que das escadas abaixo. Tenho queda para a queda.” Não tem outro remédio senão brincar. A “má sorte” daquele ano levou-o a dizer “chega”. Juntou-se à Associação Nacional de Esclerose Múltipla e voltou ao estilo de vida activo. “Não trabalho, mas também não paro.”
Não é uma batalha gratuita: Luís e Telma estão medicados, têm cuidado na alimentação, não fazem esforços que não estejam validados pelo médico. Ambos fazem meditação. Luís recorre à acupunctura e “obriga-se” a fazer fisioterapia.
Registo nacional
Na hora de registar a informação clínica de um doente, cada médico escreve o que considera importante, num texto livre, ou regista num programa que só o seu hospital tem. “Isso impede que se façam estudos nacionais, que se saiba quantos doentes há, em que situação, com que tratamento. Para o desenvolvimento da investigação clínica é quase uma condição necessária que haja um registo nacional uniforme”, explica João Cerqueira, sobre uma reivindicação que “os neurologistas e as associações de doentes têm há anos”. A Agência Europeia do Medicamento também já o pediu.
Por isso o GEEM está a criar, em parceria com a SPEM, uma proposta de registo centralizado de doentes, comum a todos os hospitais. Um projecto-piloto deve estar em marcha em Abril. E há um pedido de reunião para apresentar a ideia à comissão parlamentar de Saúde.
Para o presidente do GEEM, um registo possibilitaria às farmacêuticas fazerem ensaios clínicos no país, “permitindo aos doentes ter acesso a medicamentos cinco ou seis anos antes". E há o reverso da moeda: “As farmacêuticas testam em ambientes controlados e dizem que um medicamento reduz os surtos em 30%. Mas quando os administramos em doentes, com todas as variantes em jogo, não temos maneira de saber se a eficácia é realmente essa. O país não sabe se os medicamentos inovadores que compra estão a surtir o efeito desejado."
Certa é a questão da confidencialidade dos dados: "Tem que ser tão seguro como a relação médico-doente", diz João Cerqueira.
Também importa quantificar o lado social e económico. “A esclerose múltipla apanha jovens adultos que são apoiados pelo sistema social do país sem terem contribuído suficientemente para o garante desse sistema. Que têm um peso em termos de cuidados médicos muito elevado. É muito importante para o Estado ter dados específicos para definir políticas”, suporta Susana Protásio, da SPEM. Um registo permitiria ainda optimizar a gestão de recursos de saúde e perceber o impacto dos fármacos inovadores, nota Pedro da Costa Pinto, presidente da Associação Todos com a Esclerose Múltipla.
Mas a Direcção-Geral da Saúde já sublinhou que é necessária "uma estratégia integrada nacional", caso contrário a "proliferação de registos de doenças, a nível nacional, pode não trazer benefícios aos doentes e profissionais de saúde".